DOSSIER
Guerra nos Balcãs

3 - O Tribunal dos vencedores

Por Anabela Fino


O Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia acusou a 27 de Maio último o presidente da República Federal da Jugoslávia, Slobodan Milosevic, juntamente com outros dirigentes jugoslavos, de crimes de guerra. É a primeira vez que o TPI ordena a detenção de um chefe de Estado em exercício.
O precedente é tanto mais significativo quanto se regista escassas semanas depois de os países da NATO terem recusado a competência do Tribunal Internacional de Haia para julgar, a pedido de Belgrado, a agressão contra a Jugoslávia.

Herdeiro dos tribunais de Nuremberga e de Tóquio – em que os vencedores julgaram os crimes dos vencidos cometidos durante a II Guerra Mundial, mas não os crimes dos vencedores, com particular destaque para o lançamento de bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaky levado a cabo pelos EUA -, o TPI foi criado em 1993 por uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e está longe de poder considerar-se uma instância independente.
Sujeito a todo o tipo de pressões por parte das potências ocidentais e acusado por muitos observadores de se submeter aos seus ditames políticos, em particular dos norte-americanos - a presidente do TPI, Louise Arbour é mesmo suspeita de ter trabalhado para a CIA - , o Tribunal traz a público as suas acusações justamente numa altura em que parecia desenhar-se uma solução política para pôr termo à guerra contra a Jugoslávia.
Se se tiver presente que a ordem de prisão contra Milosevic é inexequível a menos que o presidente jugoslavo abandone o país, ou que uma mudança de poder a nível interno leve à sua detenção, torna-se inevitável concluir que as acusações do TPI, não tendo nenhum efeito prático, apenas se destinam a dificultar um hipotético acordo. Acresce, por outro lado, o absurdo de se prosseguirem as negociações com um interlocutor que é formalmente acusado de crimes de guerra.
Vale a pena lembrar ainda a estranha coincidência do aparecimento de factores de desestabilização sempre que no horizonte desponta uma hipótese de resolução diplomática para a guerra nos Balcãs. É o caso, já assinalado pela Rússia, da intensificação dos bombardeamentos da NATO sempre que o seu representante Viktor Tchernomirdin se desloca a Belgrado, e o burlesco engano do ataque à embaixada da China.

Incompetências

Neste jogo de absurdos em que se converteu a (des)ordem internacional é cada vez mais notório, por outro lado, o uso e abuso dos dois pesos e duas medidas. Como se não bastasse o facto de o TPI se caracterizar essencialmente como sendo um tribunal anti-sérvio (a sua lista pública e secreta de «criminosos» de guerra na Bósnia e na Croácia é sobretudo composta por sérvios, e entre os sete casos já julgados inclui-se um croata que, apesar de acusado de crimes de guerra, foi condenado a apenas dois anos de prisão, tendo sido recentemente libertado), como se isso não bastasse, dizia-se, há ainda a considerar a questão da competência dos tribunais da ONU.
Não deixa de ser curioso, na verdade, que os países da NATO (cujas forças, em colaboração com os serviços secretos de vários países, se aprestam a fazer detenções dos incriminados pelo TPI) não questionem a autoridade do Tribunal Penal Internacional, mas não reconheçam a competência do Tribunal Internacional de Haia para apreciar a queixa apresentada há dias por Belgrado contra os dez países da Aliança.
A iniciativa das autoridades jugoslavas de recorrer para o Tribunal assenta no facto de que «os bombardeamentos contra a Jugoslávia são ilegais, estão a provocar um genocídio e constituem uma violação dos direitos humanos». Acusações devidamente acompanhadas de imagens mostrando corpos queimados e mutilados, edifícios destruídos, homens, mulheres e crianças assassinadas pelas bombas. Do rol das acusações consta ainda a utilização de bombas de urânio e o apoio de acções terroristas, designadamente «treino, armamento, financiamento e abastecimento do chamado Exército de Libertação do Kosovo».
Nas suas alegações, Belgrado sublinhou que os bombardeamentos, para além de provocarem a morte a milhares de inocentes, estão a destruir objectivos civis, como escolas, hospitais, pontes, estradas, linhas de caminho de ferro, fábricas, monumentos e instituições culturais. Como a declaração de ilegalidade destas acções poderia demorar anos, as autoridades jugoslavas pediram ao Tribunal que, como medida provisória, decretasse o fim dos ataques.
A reacção dos países da NATO foi a que seria de esperar. Por ordem alfabética, os representantes de cada um dos dez preferiram o discurso político à argumentação jurídica para defenderem os bombardeamentos, e todos, numa acção concertada previamente, rejeitaram a competência do Tribunal – a mais alta instância judicial das Nações Unidas - para apreciar o caso.
Falar de independência, nestas circunstâncias, não passa pois de retórica. Os tribunais internacionais, nesta nova ordem ditada de Washington, só servem de facto para julgar os «outros», entendendo-se por «outros» todos os que não alinham com os EUA. Não é certamente por acaso que os norte-americanos e alguns dos seus aliados ocidentais continuam a boicotar a criação de um Tribunal Penal Internacional permanente, iniciativa lançada por uma centena de países no verão passado, em Roma. Os donos do mundo querem garantias de que nunca se sentarão no banco dos réus.

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Documentos alemães negam genocídio
e limpeza étnica no Kosovo

Os bombardeamentos contra a Jugoslávia têm sido justificados pela «catástrofe humanitária», «genocídio» e «limpeza étnica» que estaria a ser levada a cabo no Kosovo nos meses que antecederam a intervenção da NATO. Esses «argumentos» foram - e são - insistentemente invocados na Alemanha pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, o «pacifista» Fischer, a exemplo do que sucede na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

Acontece que, a 28 de Abril último, o Eric Canepa Brecht Forum divulgou em Nova Iorque um interessante conjunto de documentos internos do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão e de diferentes Tribunais Administrativos alemães que comprovam que não existia nenhuma limpeza étnica nem nenhum genocídio.
Os documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros são respostas a solicitações dos tribunais encarregados de decidir o estatuto dos albaneses do Kosovo refugiados na Alemanha.
Contrariamente ao que era afirmado em público para justificar a intervenção da NATO, aquele organismo negava em privado as acusações feitas contra a Jugoslávia.
São alguns desses documentos que a seguir se reproduzem, como mais uma prova de que não foi para pôr cobro a um genocídio que o Governo alemão, e por consequência a NATO, intervieram na questão do Kosovo, e que o genocídio e a limpeza étnica não antecederam os bombardeamentos da NATO e, a existirem, foram resultado dessa intervenção.

Relatório dos serviços secretos do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Tribunal Administrativo da Baviera, Ansbach:
«Neste momento, verifica-se uma tendência crescente no interior da República Federal da Jugoslávia para o regresso dos refugiados às suas residências. ... Apesar da desoladora situação económica na República Federal da Jugoslávia (de acordo com a informação oficial da República Federal da Jugoslávia 700.000 refugiados da Croácia, Bósnia e Herzogovina encontraram alojamento desde 1991), não são conhecidos casos de má nutrição crónica ou de carência de assistência médica entre os refugiados e não foram observados casos significativos de sem abrigo. ... De acordo com a avaliação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, albaneses do Kosovo a nível individual (e respectivos familiares mais próximos) ainda têm algumas possibilidades de se instalarem nas zonas da Jugoslávia em que já vivem os seus conterrâneos ou amigos que estão dispostos a recebê-los e a apoiá-los».

Relatório dos serviços secretos do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Tribunal Administrativo de Trier:
«Nem mesmo no Kosovo se verifica uma política explícita de perseguição à etnia albanesa. O Leste do Kosovo continua a não estar envolvido no conflito armado. A vida pública em cidades como Pristina, Urosevac, Gnjilan, etc. tem, durante todo o período do conflito, continuado numa relativa normalidade.» As «acções das forças de segurança (foram dirigidas) não directamente contra os albaneses do Kosovo enquanto um grupo étnico definido, mas contra o opositor militar e os seus actuais ou alegados apoiantes.»

Relatório dos serviços secretos do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Tribunal Administrativo, Mainz:
«Como exposto no relatório de 18 de Novembro de 1998, o KLA (sigla em inglês de Exército de Libertação do Kosovo) retomou as suas posições após a retirada parcial das forças de segurança (sérvias) em Outubro de 1998, pelo que controla de novo amplas áreas na zona do conflito. Antes do início da Primavera de 1999 ainda havia confrontos entre o KLA e as forças de segurança, embora não tivessem atingido até agora a intensidade dos combates da Primavera e Verão de 1998.»

Opinião do Tribunal Administrativo da Baviera:
«Os relatórios do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 6 de Maio, 8 de Junho e 13 de Julho de 1998 ... não permitem concluir que haja perseguições em massa dos albaneses do Kosovo. Nem sequer perseguições regionais, aplicadas à etnia albanesa numa parte específica do Kosovo, podem ser observadas com suficiente certeza. As acções violentas do exército Jugoslavo e da polícia desde Fevereiro de 1998 foram dirigidas contra actividades separatistas e não provam a perseguição de todo o grupo étnico albanês no Kosovo ou em parte dele. O que envolveu acções violentas e excessos na Jugoslávia desde Fevereiro de 1998 foi uma enérgica acção selectiva contra o movimento militar clandestino (especialmente o KLA) e pessoas em estreito contacto com ele nas áreas de operação. ... Não existe nem existiu um programa de perseguição contra a etnia albanesa.»

Opinião do Tribunal Administrativo de Baden-Württemberg:
«Os vários relatórios apresentados ao senado coincidem em que os repetidos receios de uma catástrofe humanitária ameaçar a população civil albanesa foram afastados. ... Parece ser este o caso desde a redução dos combates na sequência do acordo feito com a liderança sérvia no final de 1998 (Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 18 de Novembro de 1998). Desde então quer a situação de segurança quer as condições de vida da população de origem albanesa melhoraram significativamente. ... Em especial nas grandes cidades a vida pública voltou a uma relativa normalidade (cf. neste Ministério dos Negócios Estrangeiros, relatórios de 12 de Janeiro de 1999, para o Tribunal Administrativo de Trier; 28 de Dezembro de 1998 para o Supremo Tribunal Administrativo de Lüneberg e 23 de Dezembro de 1998 para o Tribunal Administrativo de Kassel), ainda que as tensões entre grupos da população tenham entretanto aumentado devido a actos individuais de violência... Exemplos pontuais de actos de excessiva violência contra a população civil, por exemplo in Racak, colocaram de rastos o lado sérvio e provocaram grande indignação na opinião pública mundial. Mas o número e frequência de tais excessos não permitem a conclusão de que todos os albaneses do Kosovo estão expostos a extremo perigo de vida nem que os que regressem estejam ameaçados de morte ou de graves represálias.»

 


Custos da guerra e da paz

Por Malcolm Chalmers (*)


A guerra do Kosovo está a ser um  negócio muito maior e mais dispendioso do que os planos militares da NATO tinham previsto. A campanha aérea custa agora aos Estados Unidos cerca de mil milhões de dólares por mês em munições, combustível e outros custos operacionais. Com o aumento do número de aviões arregimentados para a operação, este custo torna-se ainda maior.
Outros membros da NATO, para além dos EUA, contribuem com alguns aviões. No mínimo, a Grã-Bretanha, França e Alemanha estão a gastar agora cerca de 100 milhões de dólares por mês cada um na operação. A campanha da NATO, na sua totalidade, deve custar cerca de 1.5 mil milhões de dólares por mês. Este montante aumentará significativamente se a NATO começar a mobilizar uma força de invasão. A deslocação de 150.000 soldados poderá custar à NATO entre 1.5 a 2 mil milhões de dólares por mês, dos quais talvez cerca de metade poderá ser financiado pelos membros europeus.
Com quatro meses de guerra, assumindo que termina em Outubro, o custo total para os membros da NATO pode chegar a cerca de 20 mil milhões de dólares.
Aconteça o que acontecer, a NATO está agora confrontada com a necessidade de manter uma substancial presença militar nos Balcãs - talvez tanto como 50.000 homens -, durante muitos anos. Essa força continuará provavelmente de enfrentar uma Sérvia hostil, e novos conflitos podem emergir a qualquer momento. É improvável que os seus custos sejam inferiores a cinco mil milhões de dólares por ano, a maioria dos quais será provavelmente da responsabilidade dos países europeus.

 

Reconstrução

Os europeus terão igualmente de pagar a maior parte dos custos da assistência económica à região. A ajuda de emergência para os refugiados custará cerca de dois a três mil milhões de dólares este ano, e uma ajuda de mais de dois mil milhões terá de ser disponibilizada para os Estados vizinhos cobrirem os efeitos do conflito nas suas já debilitadas economias.
Uma vez terminado o conflito, a comunidade internacional terá igualmente de se confrontar com a tarefa de reconstrução do próprio Kosovo, onde centenas de vilas e cidades foram destruídas. Estimativas recentes sugerem um custo de pelo menos cinco mil milhões de dólares, comparável ao atribuído à reconstrução da Bósnia depois da guerra de 1992-95.
Quanto mais se intensificar a campanha da NATO contra alvos económicos, maior será o custo da reconstrução de fábricas, pontes e cidades da Sérvia.
As estimativas do Governo jugoslavo apontam para um custo de 100 mil milhões de dólares, mas por enquanto parece mais realista falar de 20 a 30 mil milhões. As potências ocidentais, no entanto, recusam pagar para a reconstrução até que um novo governo democrático esteja instalado em Belgrado.
Para além desta exigência imediata, a crise do Kosovo também persuadiu os dirigentes europeus - incluindo o primeiro-ministro britânico Tony Blair – a apelar para um «novo Plano Marshall» para a região.
Na cimeira de Berlim de Março de 1999, a União Europeia concordou em conceder um total de 60 mil milhões de euros (70 mil milhões de dólares) durante sete anos aos países da Europa Central e de Leste (tais como a Polónia, Hungria e Estónia) para apressar a sua adesão como estados-membros.
Em parte como resultado dos conflitos da última década, no entanto, nenhum dos Estados balcânicos estará pronto para se juntar na próxima vaga à União Europeia. Se um programa adicional de «assistência de pré-adesão» aos Estados balcânicos (incluindo a Bulgária e a Roménia) for acordado, isso poderá ajudar a preparar o caminho para a adesão a longo prazo. Um tal programa poderá custar cerca de cinco mil milhões de euros (seis mil milhões de dólares) por ano.


A Armada britânica no Danúbio?

O Reino Unido comprometeu-se a ser um dos mais importantes contribuintes europeus para a reconstrução dos Balcãs. Isso deve-se ao facto de ter providenciado mais tropas do que qualquer outro membro da NATO para a planeada força de intervenção no Kosovo. E também por fazer a maior contribuição para os esforços de ajuda dos Banco Europeu e Banco Mundial à região. Em conjunto, estes empenhamentos custarão ao Reino Unido qualquer coisa como mil milhões de libras por ano durante a próxima década, metade dos quais serão para custear a manutenção de uma presença militar permanente na região.

* Professor da Universidade de Bradford, Reino Unido


«Avante!» Nº 1331 - 2.Junho.1999