A Talhe de Foice
O diluente


O pedido de demissão apresentado esta semana pelo Ministro da Defesa, Veiga Simão, deu ao Primeiro-Ministro mais uma oportunidade de exibir os seus talentos de milagreiro.
Desta vez, António Guterres não esteve de modas e cometeu um triplo milagre: transformou o inconcebível numa bagatela, a irresponsabilidade num atestado de lisura e os delitos próprios em agravos alheios. É obra. «Obra de frades, os senhores calculam...», como diria Trindade Coelho.
O inconcebível aconteceu quando o Ministro da Defesa, num acesso de «transparência», decidiu enviar a uma comissão parlamentar de inquérito a lista completa dos agentes dos serviços secretos de que era o guardião e que ninguém lhe solicitara - tão óbvio seria o dislate –, o que teve como inevitável consequência o desmoronar dos próprios serviços.
A isto chamou o Primeiro-Ministro um acto de «boa fé», bagatela que deixou indiciada, por exclusão de partes, a «má fé» da comissão parlamentar destinatária do documento que, aliás, lhe chegou às mãos sob a displicente classificação de «confidencial». Ou seja, para absolver a irresponsabilidade do Ministro, Guterres não hesitou em insinuar a difamação do próprio órgão de soberania de que, formalmente, o seu Governo depende.
A irresponsabilidade do Ministro da Defesa foi, assim, transmutada por Guterres num atestado de lisura - só não se percebendo por que lhe aceitou, nesse caso, o pedido de demissão -, enquanto o delito governamental era branqueado ao preço da suspeição lançada sobre os deputados e a Assembleia da República pelo próprio Primeiro-Ministro.
Milagre de tal calibre, nem na Bíblia.
Neste tirocínio como Primeiro-Ministro, António Guterres revelou-se uma formidável máquina de diluição. Aparentemente, nada que se lhe chegue consegue manter as propriedades originais, por mais sólidas ou consistentes que elas sejam. Mestre da retórica, o homem dilui qualquer acontecimento numa ablução ininterrupta de palavras, ensopando os factos até lhes sumir os contornos, se não mesmo a matéria essencial. O discurso de Guterres, blindado numa lógica interna imune ao objecto a que se refere, viaja no éter para emitir postulados implacavelmente a caminho do axioma. O que diz acerta sempre pois responde ao lado, na forma de verdades acabadas que, jesuiticamente, fazem o quod erat demonstrandum sobre algo melhor que a realidade, porque a substitui. É a técnica do sermão.
Foi o que mais uma vez se passou com o caso Veiga Simão, cujo desenlace estava anunciado na própria trajectória política do ex-ministro do fascismo.
Incapaz de admitir o absurdo da escolha que fizera, ao nomear para Ministro da Defesa um homem que tem do exercício do poder, no mínimo, a visão da guarda pretoriana, António Guterres preferiu manchar as instituições e os representantes do Estado democrático com suspeições chocantes, a pôr em causa o inadmissível comportamento de Veiga Simão que, no fio de um rosário de inabilidades e prepotências, culminou a sua «carreira» de Ministro da Defesa com o achincalhamento dos próprios organismos que tutelava.
Respondendo com novo sermão – agora vibrado como um correctivo à Assembleia da República -, Guterres merecia entrar no episódio em que Cristo expulsou a chicote os vendilhões do templo.
O papel do Primeiro-Ministro seria o de ir em cambulhada com os seus pares vendilhões, numa confusão de mesas de câmbio viradas e galináceos a cacarejar. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1331 - 2.Junho.1999