Acordo de paz para o Kosovo


Com a abstenção da China e os votos favoráveis dos restantes 14 membros permanentes, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a 10 de Junho o plano de paz para o Kosovo. A votação teve lugar no edifício das Nações Unidas em Nova Iorque logo após o secretário-geral da NATO, Javier Solana, ter anunciado a suspensão dos bombardeamentos contra a Jugoslávia, condição indispensável para que Moscovo e Pequim dessem luz verde à resolução.

O texto, previamente negociado pelo G-8 em Colónia, com a concordância de Belgrado, devolve a condução do processo às Nações Unidas - Kofi Annan, com contrário do sucedido na Bósnia, nomeia um representante pessoal para dirigir a administração civil - e reitera o respeito pela soberania e integridade territorial da Jugoslávia.
A aprovação da resolução - que assenta nos pontos que a seguir se transcrevem -, não impediu os representantes da Rússia e da China de condenarem a NATO pela «violação da Carta das Nações Unidas» e por ter «minado a autoridade do Conselho de Segurança, abrindo um grave precedente nas relações internacionais».
Também o embaixador jugoslavo Vladislav Jovanovic, a quem foi concedido o direito de intervir no Conselho de Segurança, recordou que a NATO «violou as leis da guerra e designou como objectivos prioritários os alvos civis, incluindo hospitais, meios de comunicação, prisões, escolas, centros comerciais, transportes públicos e embaixadas estrangeiras».
O acordo finalmente alcançado demonstrou, segundo o representante russo, que a NATO acabou por descobrir «a futilidade e as trágicas consequências do bombardeamento da Jugoslávia».

Os pontos do consenso

• 1. Decide que una solução política da crise do Kosovo deverá fundamentar-se nos princípios gerais do acordo do G-8 e no de Belgrado.
• 2. Saúda a aceitação pela RFY dos princípios e outras condições referidas no parágrafo anterior, e pede a total cooperação da RFY na sua rápida aplicação.
• 3. Solicita em particular à RFY que ponha fim de forma imediata e verificável à violência e repressão no Kosovo, e que comece e complete a retirada verificável do Kosovo das forças militares, policiais e paramilitares num prazo rápido, sincronizado com a instalação da força internacional de segurança.
• 4. Confirma que, depois da retirada, será permitido que um número acordado de soldados e polícias sérvios e jugoslavos regressem ao Kosovo.
• 5. Decide a instalação no Kosovo, sob o auspício das Nações Unidas, de contingentes civis e de segurança com material e equipamento apropriado, e saúda a aceitação desta força pela RFY.
• 6. Solicita ao Secretário-Geral que defina, de acordo com o Conselho de Segurança, um representante especial para acompanhar a instalação da força internacional, e pede ao Secretário-Geral que este enviado coordene a sua acção com a força internacional para que ambos se ajudem e trabalhem com os mesmos objectivos.
• 7. Autoriza aos Estados membros e às principais organizações internacionais que a força internacional tenha um comando e controlo unificados para criar um espaço de paz, com todos os meios necessários, a que possam regressar os refugiados.
• 8. Afirma a necessidade da instalação rápida e efectiva das forças internacionais civil e de segurança, e pede às partes que cooperem na sua instalação.
• 9. Decide que as responsabilidades do contingente internacional de segurança incluirão:

a. Evitar que se reacendam as hostilidades; manter e reforçar o cessar-fogo; assegurar a retirada; e evitar o regresso ao Kosovo das forças militares, policiais e paramilitares, com excepção das que regressem para trabalhar com a força internacional na recolha de minas, a conservação do património sérvio e a presença nas fronteiras.
b. Desmilitarizar o Exército de Libertação do Kosovo (ELK) e os restantes grupos armados albaneses.
c. Estabelecer um espaço seguro em que os refugiados possam regressar as suas casas; a força internacional possa operar; se forme uma administração transitória; e a ajuda humanitária seja repartida.
d. Assegurar a ordem pública até que a presidência internacional civil se possa responsabilizar por esta tarefa.
e. Supervisionar a retirada de minas até que a força civil possa assegurar este trabalho.
f. Apoiar e trabalhar estreitamente com a força civil internacional.
g. Vigiar as fronteiras.
h. Assegurar a protecção e liberdade de movimentos da força civil internacional e das organizações internacionais.

• 10. Autoriza o Secretário-Geral, com a ajuda das organizações internacionais mais importantes, a estabelecer uma presença civil no Kosovo para criar uma administração temporária sob a qual o povo do Kosovo possa desfrutar de uma autonomia substancial dentro da RFY. Este Governo interino facilitará uma administração transitória enquanto estabelece e supervisiona o desenvolvimento de instituições provisórias e democráticas de autogoverno para assegurar uma vida pacífica no Kosovo.
• 11. Decide que as principais responsabilidades da presença civil incluirão:

a. Promover o estabelecimento, dependente de um acerto final, de uma autonomia e autogoverno substancial no Kosovo, tendo em conta os acordos do G-8 de Rambouillet.
b. Desenvolver funções administrativas civis básicas.
c. Organizar e supervisionar o desenvolvimento de instituições provisórias para o governo autónomo e democrático, dependente de um acerto político, incluindo a convocação de eleições.
d. Transferir, quando estas instituições estejam estabelecidas, as suas responsabilidades administrativas, e supervisionar e apoiar a consolidação das instituições provisórias do Kosovo e outras actividades de manutenção da paz.
e. Facilitar um processo político destinado a determinar o futuro estatuto do Kosovo, tendo em conta os acordos de Rambouillet.
f. Supervisionar a transferência de autoridade das instituições provisórias do Kosovo para as instituições estabelecidas segundo os acordos políticos.
g. Apoiar a reconstrução da economia e infraestruturas básicas.
h. Oferecer, em coordenação com organizações humanitárias, ajuda de emergência.
i. Manter a lei e a ordem civil, incluindo o estabelecimento de forças policiais locais no momento em que se registe a instalação de polícias internacionais no Kosovo.
j. Proteger e promover os direitos humanos.
k. Assegurar o regresso seguro e sem restrições dos refugiados às suas terras no Kosovo.

• 12. Salienta-se a necessidade de operações humanitárias coordenadas, e que a RFY permita o acesso ao Kosovo das ONG e que coopere com elas para assegurar a divisão rápida e efectiva da ajuda internacional.
• 13. Incentiva os Estados membros e as organizações humanitárias a contribuírem na reconstrução económica e social, assim como o regresso seguro dos deportados, e salienta a importância de concertar uma conferência de dadores internacionais quanto antes, para reconstruir a região.
• 14. Solicita uma total cooperação, também à força internacional, com o Tribunal Internacional para crimes na antiga Jugoslávia.
• 15. Intima o ELK e as restantes organizações armadas albano-kosovares a que cessem imediatamente todas as acções de ataque, e expressa as exigências de desmilitarização como condição da força internacional de segurança coordenada com o enviado especial do Secretário-Geral das Nações Unidas.
• 16. Decide que as proibições da resolução 1169 (1998) não se aplicam às armas e material bélico das forças internacionais civis e de segurança.
• 17. Saúda o trabalho da União Europeia e de outras organizações internacionais para desenvolver e estabilizar a economia da região afectada pela crise do Kosovo, incluindo o Pacto para a Estabilidade no sudeste da Europa, com o fim de promover a democracia, a prosperidade económica, a estabilidade e a cooperação regional.
• 18. Solicita a todos os Estados da região que cooperem na aplicação desta resolução.
• 19. Decide que as forças civis e de segurança se estabeleçam por um período inicial de 12 meses, e que permaneçam depois a menos que o Conselho de Segurança decida o contrário.
• 20. Solicita ao Secretário-Geral que informe o Conselho de forma regular acerca das aplicação desta resolução, incluindo relatórios dos dirigentes e representantes das forças civis e de segurança. Os primeiros relatórios devem ser apresentados após 30 dias da adopção desta resolução.
• 21. Decide acompanhar o estudo deste assunto.

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UCK na esteira da NATO

As armas da NATO calaram-se e os russos foram os primeiros a chegar a Pristina, mas o fim da guerra não é ainda sinónimo de paz. Enquanto as forças internacionais, maioritariamente da NATO, tomam lugar no Kosovo, e a ONU procura ressuscitar das cinzas tomando conta do processo de administração civil do território, da sombra saem os homens das fardas negras dispostos a tomar o lugar a que se julgam com direito. Sem olhar a meios e com o beneplácito dos aliados.

A implementação do acordo de paz para o Kosovo prevê, entre outras coisas, o desarmamento do UCK e de outros grupos armados de albanokosovares, bem como a segurança de toda a população, independentemente da sua etnia, mas a primeira semana sem bombardeamentos já demonstrou como se está longe de tal realidade.
Avançando na esteira da NATO, que não tomou nenhuma medida para os desarmar, os homens do UCK estão a tomar posições no terreno e não hesitam em recorrer à força. No sábado atacaram uma mina de carvão em Belacevac, perto de Pristina, apenas uma hora depois da retirada das forças sérvias. Segundo notícias veiculadas pela Lusa, centena e meia de operários foram forçados a fugir do local. No mesmo dia, mais de 2.500 sérvios e montenegrinos, civis, a maior parte provinente da zona de Pec (oeste), bem como um conjunto siginificativo de muçulmanos não-albaneses, começaram a abandonar as suas casas.
Milhares de outros jugoslavos que se encontravam na região optaram igualmente por acompanhar a retirada das suas força de segurança, procurando refúgio no Norte da Sérvia.
Entretanto, no domingo, um polícia e dois soldados sérvios foram mortos por disparos de albano-kosovares num subúrbio de Pristina, capital do Kosovo. Segundo um centro de informações sérvio, o ataque foi levado a cabo por «um grupo de 150 pessoas, envergando uniformes do exército jugoslavo e bóinas do UCK». A polícia sérvia confirmou as mortes, acrescentando que os seus agentes não puderam entrar em Vranjevac para remover os cadáveres das vítimas. Os jornalistas também não estão autorizados a entrar na zona.
Dois jornalistas alemães foram também mortos no Kosovo, em condições ainda não esclarecidas.


Insegurança

O secretário-geral da NATO, Javier Solana, garantiu entretanto que a KFOR (força internacional para a região) assegura a segurança de todos. «Quero fazer um apelo a todos os cidadãos para que não se vão embora, para que fiquem, porque vão estar protegidos pela KFOR, pelos soldados da NATO e de outros países que participam nela», disse Solana em Bruxelas, mas os problemas que surgem um pouco por todo o lado não contribuem para a confiança das populações.
A par do avanço do UCK, também a actuação de algumas forças da KFOR faz recear o pior. Foi o que aconteceu em Morina, com as tropas alemãs a ordenarem a retirada da polícia de fronteira sérvia, segundo o relato da Lusa:
«Quanto tempo precisam para sair?», perguntou o general alemão Helmut Harff.
«Seis horas», respondeu calmamente o coronel Fehir.
«Têm 30 minutos».
«Mas somos 70 e não temos camiões».
«Trinta minutos. Vinte e oito minutos agora. Fim da discussão. Devem executar esta ordem». E os sérvios partiram a pé, em grupos de 10.

Recentes declarações de Hashim Thaci, dirigente do UCK, apontam igualmente para o extremar de posições nada consonantes com o acordo de paz.
Em declarações à rádio austríaca, Thaci auto-proclamamou-se «primeiro-ministro» e não deu garantias de o movimento proceder à entrega das suas armas.
A arrogância das declarações foi ao ponto de Thaci advertir que o seu exército não se compromete a garantir a segurança das tropas russas no Kosovo.
«Não damos quaisquer garantias às tropas russas» que entraram na província «sem o acordo da comunidade internacional», disse Thaci, que no entanto não parece nada preocupado com o restante articulado do acordo. «Trata-se de um processo em aberto. O acordo alcançado constitui uma solução provisória. O que interessa é o processo político, que é também uma grande arma», disse, reafirmando que o objectivo do UCK é a independência e que o povo kosovar tem o direito a pronunciar-se em referendo.
Sem discutir a legitimidade do seu «governo», Thaci mostrou-se disposto a aceitar uma participação da Liga Democrática do Kosovo, de Ibrahim Rugova, num governo provisório para o Kosovo. Também o próprio Rugova sonha com «um país independente», um pequeno país que «será simpático para a Europa», ou, em alternativa, ligado «com um outro país da região», como afirmou há dias a um jornal francês.
Com tais perspectivas, a «força internacional de paz» corre o risco de ficar a braços com um novo êxodo, e de ser ela própria a chocar o ovo de novas convulsões nos Balcãs.


«Avante!» Nº 1333 - 17.Junho.1999