O Relatório cor-de-rosa
Por António Filipe
Desde 1987 que todos os Governos, por imperativo
legal, apresentam à Assembleia da República até 31 de Março
de cada ano, um Relatório sobre a situação do país em
matéria de Segurança Interna. Até este ano, em que o Governo
se limitou a entregar em finais de Abril um pseudo relatório que
não passa de um texto propagandistico do MAI.
A Lei de Segurança Interna aprovada em 1987 incumbiu o Governo de apresentar todos os anos à Assembleia de República um Relatório de Segurança Interna. Desde que 1991 foi estabelecido que esse Relatório deveria ser entregue até ao dia 31 de Março de cada ano, para permitir incorporar os relatórios das várias forças de segurança e elaborar a respectiva síntese relativamente ao ano civil anterior, todos os Governos, quer os do PSD quer o do PS, respeitaram essa incumbência com pontualidade.
Estes Relatórios
passaram a ser instrumentos indispensáveis para a avaliação da
situação do país em matéria de Segurança Interna, apesar de
terem sido por diversas vezes alvo de justas críticas quanto ao
seu conteúdo. Assim aconteceu relativamente a considerações
constantes dos relatórios de forças de segurança que
reflectiam concepções xenófobas ou mesmo racistas do fenómeno
criminal; assim aconteceu também em relação a apreciações
destituídas de qualquer base objectiva e por vezes
despropositadas; o mesmo sucedeu a respeito de conclusões
extraídas pelos Governos acerca da evolução da situação da
Segurança Interna que não tinham correspondência com os dados
objectivos constantes dos relatórios das forças de segurança.
Em todo o caso, na medida em que, para além das apreciações
dos Governos, os Relatórios de Segurança Interna incluíam
sempre os relatórios parcelares apresentados por cada uma
forças de segurança, com os respectivos quadros, era sempre
possível avaliar até que ponto as apreciações governamentais
coincidiam ou divergiam com a realidade relatada. Foi assim que,
ao longo de vários anos, particularmente durante os Governos
PSD, se tornou possível afirmar com segurança, na base dos
Relatórios de Segurança Interna, que a política de
super-esquadras estava a produzir resultados nefastos e a
contribuir para aumentar a insegurança e a intranquilidade dos
cidadãos residentes nos meios urbanos.
É também inegável que os Relatórios apresentados já pelo
actual Governo relativamente aos anos de 1995 a 1997, melhoraram
de qualidade em relação aos anteriores, particularmente quanto
à contribuição dada por cada uma das forças de segurança,
acentuando-se porém a tendência do Governo para extrair
ilacções quanto a hipotéticos resultados da sua política que
não só não eram comprovadas, como por vezes eram desmentidas,
pelos próprios números apresentados. O que só reforçava a
importância do Relatório anual. Descontada a propaganda
governamental, era possível formular conclusões quanto a reais
progressos, mas era também possível detectar os reais problemas
existentes.
Pois bem: Relativamente ao ano de 1998, o Governo PS decidiu
contrariar de forma escandalosa a evolução positiva que se
vinha a desenvolver quanto à qualidade dos Relatórios
apresentados. E assim, não só não cumpriu o prazo legalmente
estabelecido (o que acontece pela primeira vez desde há quase
uma década) como decidiu pura e simplesmente não apresentar à
Assembleia da República os relatórios das diversas forças de
segurança. Na verdade, o Relatório de Segurança Interna foi
substituído por uma simples apreciação feita exclusivamente
sob a responsabilidade do Governo e que não faz mais do que
repetir insistentemente alguns chavões de auto-elogio da
actuação do Ministério da Administração Interna.
Enquanto todos os Relatórios, até ao de 1997, continham uma
síntese da responsabilidade directa do Governo, seguida de
relatórios próprios da GNR, da PSP, da PJ, do SEF, do SIS e do
SAM (Sistema de Autoridade Marítima), o Relatório relativo a
1998 contém apenas a apreciação governamental acerca de dados
que não são tornados públicos. Em vez das 222 páginas do
Relatório de 1997, temos 45 páginas sobre 1998 cuja
conformidade com quaisquer dados objectivos não é possível
comprovar.
Claro está que a apreciação do Governo em relação à sua
própria política é francamente positiva e assenta em
verdadeiros ovos-de-Colombo: Se diminui o número de
participações às forças de segurança é porque, graças à
política do Governo, a criminalidade diminuiu. Se pelo
contrário, aumenta o número de participações é porque,
graças ainda à política do Governo, aumentou a
operacionalidade das forças de segurança. Nunca falha. Mas há
mais: Se algum tipo de crime diminui, está tudo dito, mas se
algum aumenta, ainda assim, ou aumentou menos do que em alguns
anos anteriores ou contrariou a tendência de diminuição que se
vinha a verificar, e em todo o caso fica aquém do que se
verifica noutros países e está a merecer a maior atenção da
parte do Governo. Ainda assim, se outra explicação faltar,
resta alterar os critérios estatísticos anteriormente usados.
Casos concretos
Para não poder ser
acusado do mesmo vício de que acuso o Governo, seguem alguns
exemplos concretos retirados do chamado Relatório de Segurança
Interna relativo a 1998.
O Governo começa por decretar que as chamadas "cifras
negras", isto é, a criminalidade não participada, diminuiu
significativamente nos últimos anos. Em 1994 seria de 28% e
presentemente oscilaria entre os 35% e os 40%, segundo estudos da
Universidade Nova e da DECO, comprovados
"empiricamente" pelas forças policiais. Eis como,
fazendo fé em estudos cuja fiabilidade consegue ficar aquém da
de muitas sondagens eleitorais, o Governo decreta uma
diminuição geral da criminalidade que pode oscilar entre os 7%
e os 12%. Diferença de somenos.
Depois, "eliminou-se a imputação das participações
transferidas da GNR e da PSP para a PJ, passando a registar-se em
cada um destes serviços as participações recebidas em primeira
mão". Nada teria contra a alteração do critério, não
fosse o caso de serem feitas comparações entre realidades
diferentes, fazendo passar limpeza de ficheiros por diminuição
da criminalidade.
Seguem-se os truques já referidos: A PSP e a GNR registaram um
aumento de 27% nas detenções efectuadas. Aumento de
criminalidade? Nada disso. Puro "acréscimo de
operacionalidade". Aumentaram as participações de
cidadãos às forças policiais (não se sabe em quanto). Razões
invocadas: "o aumento da capacidade de recebimento de
queixas" e da "taxa de informatização" de postos
e esquadras.
Afirma o Governo que "prosseguiu a alteração, em sentido
positivo, das condições de relacionamento das forças policiais
com o cidadão". Nenhuma referência ao facto de, sobre o
mesmo período, um Relatório da Amnistia Internacional mencionar
a ocorrência de "situações arbitrárias e
repressivas" em estabelecimentos prisionais e postos
policiais portugueses.
E por todo o Relatório abundam as situações em que a
criminalidade desceu para cima. Exemplos: O número de crimes
praticados com armas de fogo aumentou (28 casos), pelo que
"estabilizou, contrariando o crescimento verificado nos anos
anteriores", apesar do acréscimo na utilização deste tipo
de arma nos roubos na via pública. O crescimento da
delinquência juvenil "desacelerou", e "cresceu
menos" nas grandes cidades, mas a desaceleração não foi
acompanhada nos meios suburbanos. Aumentou em 68% a heroína
apreendida, o que se explica não pelo aumento do tráfico de
droga, mas tão só pelo "incremento das acções
policiais". Os roubos a motoristas de transportes públicos,
calcula-se que tenham aumentado, na medida em que o Governo se
limita a dizer que o fenómeno "foi sustido no último
trimestre do ano". Aumentou o furto de viaturas e em
viaturas, mas ainda assim por boas razões, na medida em que tal
se deveu ao aumento do parque automóvel e ao afluxo de viaturas
para a EXPO 98, realização que também é responsabilizada pelo
aumento de casos de falsificação de moeda. Manteve-se a
tendência para o acréscimo da conflituosidade interpessoal e
intrafamiliar, o que "deverá ser entendido como um
indicador de maior confiança nas forças policiais". O
acréscimo de furtos por carteiristas "foge anormalmente à
linha de tendência observada nos últimos anos" e o de
furtos em viaturas "também contraditou a tendência de
diminuição que se regista desde 1995". O total de roubos
ou furtos diminuiu 3,9% e "apenas os furtos simples a
pessoas sofreram aumento de 22%, acompanhado de um aumento de
detenções em flagrante delito". Os processos por crime de
corrupção foram mais 264 que em 1998, mas isso deveu-se
"à melhoria da eficácia do relacionamento entre os
órgãos fiscalizadores e os departamentos da Administração
Pública onde foram praticados". Mas enfim, "a
expressão percentual da criminalidade violenta e grave
mantém-se abaixo dos valores conhecidos sobre outros países
europeus".
De tudo isto se conclui que pela primeira vez na última década
não foi apresentado à Assembleia da República um Relatório de
Segurança Interna contendo dados objectivos e que, em vez disso,
o Governo preferiu entregar um documento que torna evidente que
está mais preocupado em ocultar e justificar os problemas do que
propriamente em resolvê-los. E conclui-se, por outro lado, que
com esta atitude o Governo revela que afinal a situação da
Segurança Interna não é tão cor-de-rosa como o dito
Relatório a pretende pintar.