Emigrantes
em França
Aventuras
portuguesas, sonhos de vida
Uns falam correctamente a língua de origem, outros conjugam verbos portugueses com substantivos franceses. Uns cumprimentam com dois beijos, outros com os quatro típicos de França. Uns casam-se na cidade onde vivem, outros fazem questão de passar pela igreja em Portugal. Muitos emigraram por necessidade económica, outros para fugir à guerra colonial. São os portugueses que vivem em França. Um retrato de gente que se sente integrada no país de acolhimento e que não desiste de ver todos os seus sonhos concretizados.
Os emigrantes
portugueses vão muito para além do estereótipo convencional
que todos conhecemos: pouca educação, trabalhadores da
construção civil ou da limpeza, coleccionadores de cassetes de
música «pimba», gente com o sonho de regressar a Portugal
sempre debaixo do braço.
Naturalmente, os estereótipos são sempre limitados e há muita
gente que não se encaixa neles. Nem todos ficam fechados na
terra natal durante o mês de Agosto. Nem todos constroem uma
vivenda na aldeia com os luxos possíveis, descurando a casa que
habitam a maior parte do ano. Nem todos sentem uma nostalgia
arrebatadora do Portugal que se viram obrigados a abandonar há
30 anos atrás.
Saudades, essas, sentem todos. Tantas que às vezes não sabem o
que fazer com elas. Procuram escapar-lhes a trabalhar ou a
projectar o futuro.
Há quem já tenha chegado à idade da reforma e se divida entre
Portugal e o país de acolhimento, onde lançaram profundas
raízes, que se traduziram em filhos, netos e amigos. O Verão é
passado cá e o Inverno lá, até porque existe um certo receio
dos serviços de saúde portugueses. As histórias são muitas,
contadas na primeira ou na terceira pessoa, e as comparações
com o sistema francês, alemão ou suíço são inevitáveis.
Muitos emigrantes integraram-se de uma forma mais completa no
país onde residem. Viajando pela região de Paris, o Avante!
encontrou um grupo de portugueses em Colombes, na Associação de
Cultura Popular Portugal Novo (ACPPN), que representa esse outro
lado da emigração, aquele que foge às caricaturas e às ideias
feitas.
À nossa espera tínhamos dez pessoas, entre os 15 e os 53 anos.
A conversa, animada desde o início, prolongou-se por várias
horas, até as cassetes se esgotarem. As suas histórias, as
dificuldades dos primeiros tempos, a ligação a Portugal e a
segunda geração (ver texto nestas páginas) constituíram os
temas da entrevista.
Ter de apontar para as coisas
Quase todos os
portugueses emigraram por razões económicas, muitos já com
contactos em França, outros completamente à sorte. A maioria
falavam apenas português, tinha pouco dinheiro e esperava poder
trazer a família.
Fernando Lima veio em 1969 com 22 anos. Actualmente trabalha numa
seguradora. «Consegui adaptar-me ao sistema francês e fiquei
por aqui. Quando se chega, sem falar a língua, é difícil
compreender e fazer-se entender. Para fazer as compras tinha de
apontar para as coisas», conta.
«No princípio, nos anos 70, os franceses viam-nos como se
fossemos só trabalhadores de pá e picareta. Mas depois
demonstrámos que sabemos fazer outras coisas e a opinião deles
agora é muito diferente. A maior parte dos portugueses está bem
integrada. Mesmo os franceses dizem que é uma população que
eles gostam, tanto para trabalhar como para conviver», afirma.
António Topa decidiu emigrar em 1969. «O fascismo oprimia todo
o povo português. Acima de tudo eu não queria participar numa
guerra sangrenta como era a guerra colonial», sublinha.
Funcionário na Embaixada de Portugal em Paris durante 10 anos no
sector de emigração e no apoio cultural, é desde 1984
professor de francês numa prisão e tradutor.
«A fase dramática da emigração - com os bairros de lata,
quando éramos olhados de lado, na altura em que ser português
era igual a ser a pedreiro - passou. Em termos económicos a
emigração está perfeitamente integrada», considera.
«Não há dúvida que era preciso muita coragem, sobretudo para
as pessoas que não tinham estudos e saíam com filhos! Se esse
povo tivesse sido ajudado, quer em Portugal quer aqui... Se agora
estamos numa de música "pimba", é porque não nos
propõem outra coisa. Se lhes dessem outro tipo de música... As
pessoas não são burras», defende António Topa.
«Somos conceituados aos olhos dos franceses, mas isso devia dar
origem a um debate sobre o que é a integração. Agora há uma
diluição muito grande. Será que os filhos da primeira
emigração são portugueses ou são franceses?», interroga.
Só no fim da década de 60 é que passou a haver mais
portugueses em França. «Quando começou a aparecer mais gente
tornou-se mais fácil para os que já cá estavam», salienta
José dos Santos, que emigrou em 1970 com 25 anos para poder
pagar o empréstimo que tinha feito a um banco para construir a
sua casa. É trabalhador da construção civil, à semelhança de
muitos portugueses.
Distâncias que se encurtam
Nessa altura a
sociedade francesa era muito diferente da portuguesa. Fernando
diz que o que mais o impressionou quando chegou foi ver namorados
a beijarem-se na rua. Para Topa foi assistir à indiferença das
pessoas ao passarem por um homem caído no chão. Eduarda Lemos -
que veio para França em 1968 para fazer companhia a uma tia -
conta que a imagem que mais a marcou nos primeiros dias foi o
hábito dos franceses transportarem o pão nas mãos, sem
qualquer saco ou embrulho.
Para muitos , os primeiros anos foram feitos de desilusão.
«Havia a ideia que se vinha para aqui, se abanava a árvore e as
notas começavam a cair», explica Fernando. Multiplicavam-se os
casos de emigrantes que se viam obrigados a ir para os
«bidonvilles», bairros de lata que inicialmente eram compostos
por velhas carruagens de comboios alugadas a trabalhadores
portugueses. «Uma pessoa vinha de Portugal e tinha de arranjar
um sítio qualquer onde se meter. Bom ou mau, tinha de aceitar»,
lembra Fernando.
António Topa considera que as coisas hoje estão muito mais
fáceis. «Há um percurso de 30 anos. Abandonar a família e os
amigos foi um acto de coragem. Agora está mais esbatido, porque
o nosso nível de vida evoluiu. Portugal hoje em dia está ali ao
lado. Há contactos pela rádio, televisão, telefone. Hoje não
se sente, mas já se sentiu muito.»
Contudo, apesar dos meios de comunicação, poucos são os que
acompanham a vida social e política portuguesa. «Há um grande
desinteresse pela política, porque estão longe ou acham que
não lhes diz respeito», afirma Fernando.
«Há uma pequena percentagem de pessoas que se preocupa, talvez
10 por cento. A maior parte compra só A Bola, lêem os
títulos e atiram fora o resto. Quanto ao que se passa em
França, acompanham mais, mas pouco. Uns 20 por cento», refere
António Salgado, empregado numa empresa de limpezas. Veio para
França em 1983, quando se casou com uma emigrante.
O futuro passa por Portugal
As saudades levam
homens e mulheres a gostar de folclore ou de sardinha assada,
mesmo se antes não apreciavam. Levam-nos a construir
associações, a organizar grupos de teatro, ranchos, equipas de
futebol, bailes, jantares e viagens. Levam-nos a iniciar aulas de
português para os filhos, de maneira que estes não percam
pitada das conversas, dos hábitos e da cultura dos pais.
Trinta anos depois da partida, as saudades não estão esbatidas.
Cada vez mais perto da reforma, José, Fernando e Eduarda pensam
no regresso.
«Eu ia já amanhã», confessa José, acrescentando que não tem
medo de não conseguir voltar a integrar-se na sociedade
portuguesa. «Sinto-me bem aqui, sinto-me bem quando vou lá
abaixo. Se regressar definitivamente acho que me vou sentir bem
também.» Se os seus planos se concretizarem, volta em Fevereiro
do próximo ano. «O único problema é a minha mulher que não
quer deixar o neto.»
Fernando só tem medo dos serviços de saúde públicos. «Pode
ser que até à reforma melhore, porque isto está mais para
melhorar do que para piorar.» Eduarda conta que «não é
possível ir já, porque eu não sou de poupar, gozei a vida cá.
Se saí do meu país foi para viver melhor do que se lá
estivesse. Para viver pior ou igual deixava-me estar lá.»
Passe ou não por Portugal, o futuro é encarado com optimismo
por todos. António Topa tem o sonho mais bonito: «Que de
Monção à Ponta de Sagres, Portugal seja um espaço de paz e
liberdade para todos e não só para meia dúzia.» Esperemos que
se concretize.
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Segunda
geração:
«É
muito bom, porque temos duas culturas»
Susana, Celine, Vítor e Marco nasceram em França, mas sentem-se portugueses. São filhos de emigrantes, visitam todos os anos Portugal e têm vontade de conhecer melhor o país. À semelhança de todos os jovens, receiam o desemprego e temem pelo seu futuro. Contam as dificuldades que têm em casa com os pais e queixam-se da forma como são vistos em Portugal.
Celine Barbosa tem
19 anos, estuda Direito e é membro do racho folclórico da
associação. Susana Rodrigues, de 20 anos, é secretária e
pertence ao grupo de dança moderna.
Ambas estão desde pequenas ligadas ao mundo associativo e hoje
integram a direcção da ACPPN. Ambas têm opiniões marcadas
pela sua dupla identidade, de que tanto se orgulham. Ambas se
afirmam portuguesas acima de tudo, apesar de terem nascido em
França.
Tanto Celine como Susana frequentaram o curso de português
durante vários anos, sempre com boas notas. Para Susana,
aprender a língua dos pais serve para comunicar com a família
que está em Portugal e para conhecer melhor a cultura
portuguesa. Além disso, «é bom para arranjar trabalho».
«Os nossos primeiros professores foram os nossos pais. Foram
eles que nos transmitiram o amor por Portugal, a vontade de
aprender a língua. Para nós, emigrantes, é muito bom, porque
temos duas culturas. Sou portuguesa, sou francesa e sinto-me bem
como sou. Quando tiver filhos quero que eles aprendam
português», afirma Celine, que lembra que a geração que a
precedeu, aquela que tem hoje 30 anos, raramente fala em
português.
Tal como qualquer outro jovem, os seus medos passam pela
incerteza no futuro. «Pergunto-me muitas vezes como é que vai
ser a minha vida daqui para a frente, se vou arranjar um emprego.
Agora há uma grande percentagem de desempregados, muitos jovens
não conseguem arranjar trabalho depois de muitos anos de
estudo», diz Celine.
Susana fala na droga e na necessidade de prevenir a
toxicodependência. «Cada vez há mais droga, mesmo na aldeia,
lá em Portugal.»
Marco Barbosa, 15 anos, irmão de Celine, refere o nível de
vida: «Está tudo cada vez mais caro e os salários cada vez
mais baixos. Isto está mau.»
Pais e filhos
Admiram os pais pela
coragem que os levou a procurar uma vida melhor no estrangeiro.
«Não sei se conseguia deixar a França, porque é aqui que
tenho as minhas raízes. Não tinha medo nenhum de ir para
Portugal, mas ir para outro país, sem nenhuma família, ter de
começar a minha vida do zero, sem nada, sem pessoas ao meu
lado... não sei se conseguia», afirma Celine.
Contudo, as relações entre pais e filhos nem sempre correm bem.
Isso acontece não só devido à diferença de gerações, mas
também à mentalidade conservadora e essencialmente rural dos
primeiros e as concepções urbanas dos segundos.
Celine explica: «Há choques, porque eles estão mais apegados
às tradições. Eles vêm de uma aldeia. Em relação às
saídas à noite, aos namorados, ao casamento às vezes temos
dificuldades em falar com eles. Com o meu pai falo de tudo,
mas... mas... »
«A princípio foi duro conseguir sair à noite, mas acho que é
preciso falar com os pais. É importante nós termos confiança
neles e eles em nós», defende Susana.
Todos estão de acordo que são os pais que levantam mais
problemas, e não as mães. «O que os pais dizem é que as
moças podem chegar grávidas a casa e os moços não», diz
Celine, acrescentando: «Nós até compreendemos porque eles têm
medo por nós.»
Vítor Castro, de 19 anos, considera que a maioria dos rapazes da
sua idade não tem preconceitos em relação às raparigas.
«Para mim, deve haver liberdade para todos. Homens e mulheres
são iguais.»
Marco tem uma opinião muito diferente. «Rapazes e raparigas
não são a mesma coisa. Os rapazes podem fazer tudo e as
raparigas não. É assim que deve ser. Os homens têm mais
direitos que as mulheres. As mulheres são iguais, mas... nas
saídas não são. Têm de ficar em casa.» A irmã ri-se e diz:
«É tal qual o pai.»
As palavras de Marco geram discussão e ele tenta argumentar.
Dizem-lhe que assim nunca se vai casar, que as suas ideias já
estão ultrapassadas. Ele protege-se com a velha ideia de que
«um homem pode defender-se e uma mulher não».
À descoberta de Portugal
Susana, Celine,
Vítor e Marco conhecem pouco Portugal. Todos os anos vêm aqui
passar as férias de Verão, mas raramente saem da zona da aldeia
dos pais.
«O dinheiro que os meus pais ganharam aqui foi para construir
uma casa em Portugal, por isso, quando lá vão, é para ver a
família. O meu pai prefere ficar em casa, no terreno. Este ano
já tenho carta de condução, por isso já posso ir a outros
lados. Nunca fui ao Algarve, por exemplo. Só fui a Braga, a
Fátima e ao Sameiro», afirma Susana.
Mas o que conhecem de facto do país que consideram o seu? Não
sabem o nome do Presidente da República, porque «não
acompanhamos muito o que se passa em Portugal. Não é que não
nos interessemos, mas como é que quer que a gente saiba?»,
pergunta Susana.
Se o campo da política não lhes diz muito, o mesmo não
acontece com a música. Além dos cantores mais populares,
conhecem os Delfins, os Xutos e Pontapés, o Pedro Abrunhosa.
«Quando vou lá, não passo por ignorante em relação à
música deles. Todos nós conhecemos, porque ouvimos rádio,
vemos a RTPI e temos parabólica», explica Celine, entrando em
contradição com a amiga, que dizia não terem meios para se
informarem.
Para Marco, Portugal «é bom para descansar, para as férias.
Pode-se dizer boa tarde a toda a gente, enquanto que aqui, se
dissermos, reagem mal. O ar também é bom.»
Susana considera que houve uma grande evolução, reconhecendo em
Portugal mudanças que considera como sinais de desenvolvimento.
Ou pelo menos identifica-se com eles.
«Quando eu era pequena, a minha mãe tinha de levar os iogurtes
na geleira, porque não tinham Petit Filous. Há dez anos
não havia tanta coisa, pelo menos nas aldeias. Quem viu Braga
há 15 anos e quem vê agora... Agora há o McDonalds,
muitas lojas. No ano passado fui lá e fiquei tola de ver tantas
pessoas na rua.»
Emigrantes discriminados
Uma queixa comum a
pais e filhos é a forma como os emigrantes são olhados em
Portugal. «Não somos mal tratados, mas somos mal vistos.
Acusam-nos de causar acidentes de viação e que a vida é mais
cara por causa de nós. "Lá vêm os emigrantes, lá vêm os
avecs", dizem eles.» Susana confessa-se magoada.
«Aqui somos emigrantes e lá somos franceses. Mas eu não me
importa, assim tenho duas culturas. Quando vou a Portugal é para
ver a minha família e, se me quiserem chamar emigrante,
chamem», exclama Celine.
«É preciso que os portugueses de lá compreendam que, se as
pessoas estão aqui, não é por terem querido abandonar o país,
mas sim porque tiveram necessidade de o fazer. Não acho que o
meu pai seja emigrante, o meu pai é português. É um cidadão
português a trabalhar no estrangeiro», acrescenta.
Apesar deste sentimento, admitem a hipótese de ir viver
definitivamente para Portugal. Mas alimentam alguns receios em
relação ao sistema de saúde e ao desemprego.
«Gostava de ir para Portugal viver, mas é preciso pensar bem.
Sempre vivi aqui, só lá vou de férias. Não sei como é
Portugal no Inverno. Vejo o meu futuro como o de toda a gente,
casar, ter filhos... Ir para lá não é para apanhar moscas, é
preciso trabalhar e lá, para isso, é preciso ter cunhas»,
sustenta Susana.
Celine também pensa nessa possibilidade, mas de uma forma mais
remota. «Queria ser advogada, casar, ter filhos, continuar nesta
associação ou noutra, fazer conhecer a nossa cultura. Os meus
filhos podiam ir a Portugal visitar os avós durante meses. Ir
para Portugal de vez? Talvez, mas para uma cidade.»
Será que estes quatro jovens são diferentes dos portugueses
nascidos e criados em Portugal? Resultado de duas culturas,
filhos de dois países, integrados em França mas sem abandonar a
cultura portuguesa, os luso-descendentes são cada vez mais
parecidos com quaisquer jovens de 20 anos que vivam em Portugal.
A integração na União Europeia, a internacionalização das
marcas, das músicas e dos programas de televisão, a
globalização e a internet, a facilidade em viajar encurtam as
distâncias e aproximam pessoas que descobrem que afinal não
são tão diferentes como pareciam à primeira vista. Porque os
problemas e os medos são os mesmos, e as referências culturais
também.