DOSSIER
Guerra nos Balcãs
Por Anabela Fino
O problema do Kosovo
serviu de pretexto para a NATO experimentar algumas das suas
novas armas ou para testar a eficácia de outras que, pela
polémica que suscitam, têm sido pouco utilizadas. Incluem-se no
primeiro caso as famosas bombas de grafite, capazes de provocar
curtos-circuitos sem destruir as instalações eléctricas, e no
segundo caso as bombas revestidas com urânio empobrecido e as
bombas de fragmentação.
Aparentemente, as
bombas de grafite são o que se poderia chamar uma «arma
limpa»: bloqueiam os sistemas sem os destruir, ou, como diria o
porta-voz da NATO, Jamie Shea, dão ao seu possuidor o «botão»
da energia eléctrica. Acontece no entanto que a questão de
ligar ou desligar o «botão» implica com a vida de milhões de
pessoas. No primeiro ataque com esta arma, a 2 de Maio último,
mais de cinco milhões de cidadãos da Sérvia ficaram privados
da satisfação das mais elementares necessidades. Os serviços
mais afectados foram os dos hospitais: sem energia, as
incubadoras das maternidades não funcionam, nem os sistemas de
suporte de vida dos cuidados intensivos, nem os aparelhos dos
cuidados intensivos, das hemodiálises, etc., etc., etc.. É toda
uma população civil a ser atacada, o que representa uma
violação sem precedentes da Convenção de Genebra de 1949 e de
1977, bem como de todos os protocolos suplementares
posteriormente acordados. Todos os países da Aliança
subscreveram estas convenções.
De referir, a propósito, que a expressão «dano colateral»
inventada pela NATO não é reconhecida pela lei internacional.
Acresce ainda que, de acordo com os especialistas, as bombas de
grafite, ao explodirem, deixam no ar um pó cancerígeno que não
deixará de provocar os seus efeitos, a longo prazo, nas pessoas
que o inalaram.
A morte lenta
Outra das armas
usadas nesta guerra é a temível bomba de urânio empobrecido,
que deixa atrás de si elevados níveis de radioactividade, cujas
consequências se fazem sentir ao longo dos anos. Profusamente
utilizadas no Iraque, durante a guerra do Golfo, os seus efeitos
continuam a ser objecto de estudo. Segundo o professor Douglas
Rokke, cientista americano membro da comissão do Pentágono
encarregue de estudar os efeitos deste tipo de munições, que
participou durante anos em investigações no Iraque, cerca de
38.000 iraquianos já morreram vítimas das radiações, enquanto
dispararam em flecha os casos de nascimentos de crianças com
graves deficiências.
Um recente artigo da revista New Scientist denunciava a
contaminação do Kosovo pela radioactividade dos milhares de
bombas de urânio empobrecido lançados contra o território. A
não ser efectuada uma descontaminação da região,
necessariamente dispendiosa e demorada, todos os que fiquem
expostos às radiações correm risco de vida. A pressa dos
aliados em fazer regressar os refugiados ao Kosovo, para não
terem de enfrentar as consequências do Inverno em campos sem
condições, pode significar, a médio prazo, uma condenação à
morte.
Quanto às bombas de fragmentação, cuja utilização foi
confirmada pelo próprio Ministério da Defesa britânico, têm a
sinistra particularidade de continuarem a matar mesmo quando
falham.
Cada bomba, que pesa cerca de 300 Kg, divide-se ao meio em pleno
voo, pouco depois de lançada, e liberta a sua carga de pequenos
explosivos cerca de 150 -, do tamanho de uma laranja,
altamente mortíferos. Segundo os especialistas, entre 5 a 30 por
cento destes explosivos não chegam a explodir na altura do
embate, mas nem por isso se perdem, já que continuam activos,
rebentando quando são pisados.
Do ponto de vista militar, as bombas de fragmentação substituem
com vantagem as minas anti-pessoal: produzem o mesmo efeito e
não necessitam de ser enterradas no terreno, ou seja, como são
lançadas de avião não exigem do atacante o domínio do
território a atingir. Com este expediente, os países da NATO, e
em particular os EUA, procuram contornar a convenção mundial
que proíbe o uso de minas anti-pessoal, que continuam a matar
mesmo passado muito tempo de terminarem os conflitos e cujas
principais vítimas são civis.
Na agressão contra a Jugoslávia, a aviação da NATO efectuou
pelo menos 278 ataques com bombas de fragmentação. Mais de 150
depósitos, contendo cada um 240 bombas, foram despejados contra
cidades no Kosovo e Metohija (Pristina, Urosevac, Djakovica,
Prizren, entre outras), e por toda a República Federal da
Jugoslávia. Pelo menos 87 civis perderam a vida nestes ataques,
e 130 ficaram gravemente feridos, segundo as autoridades
jugoslavas.
As consequências para o meio ambiente da utilização destas
armas é outro aspecto que não pode ser ignorado. Para além dos
perigos da radioactividade, há ainda a ter em conta que a
destruição de refinarias, de indústrias químicas e outros
produtos altamente tóxicos, de vastas áreas de florestas,
representam uma catástrofe ambiental não apenas para a
Jugoslávia mas para todo o continente europeu. Todas as
convenções existentes sobre a matéria (protecção do
ambiente, da camada de ozono, etc.) foram violadas. A factura
será pesada e a Europa não a poderá ignorar.
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Comentários
Intelectuais de todos os países e de todos os quadrantes políticos manifestaram nos últimos dois meses e meio as suas preocupações com a mudança qualitativa registada na cena política internacional com o ataque da NATO à Jugoslávia. Algumas dessas reflexões, de que aqui reproduzimos extractos de textos publicados no diário espanhol El País, são um contributo para o debate que necessariamente terá de ser feito sobre a nova era que se abre no capítulo das relações entre os Estados. O futuro da ONU e do Conselho de Segurança, o recurso à força na regulamentação de conflitos, o domínio norte-americano na cena mundial, o papel dos povos na defesa da paz, são questões em aberto a exigir respostas urgentes.
A ilegalidade da guerra
«As pressões que enfraquecem a proibição do uso da força são deploráveis, e os argumentos para legitimar o referido uso nessas circunstâncias são pouco convincentes e perigosos (...) As violações dos direitos humanos são demasiado comuns e, se fosse permitido resolvê-las mediante a utilização da força, não haveria lei capaz de proibir o uso da força por parte de praticamente de qualquer Estado contra qualquer outro. Creio que será preciso defender os direitos humanos e resolver outras injustiças por outros meios que sejam pacíficos, não abrindo as portas à agressão e destruindo o principal avanço do direito internacional, que é a ilegalidade da guerra e a proibição da força».
(Louis
Henkin, professor emérito de direito
internacional na Universidade de Colúmbia, Estados Unidos)
A diplomacia e as negociações
nunca se esgotam
(...) «Foi durante
o mandato de Ronald Reagan que começou a manifestar-se
abertamente nos EUA o desafio às leis internacionais e à Carta
das Nações Unidas. As máximas autoridades explicavam com uma
clareza brutal que o Tribunal Internacional, a ONU e outros
organismos tinham perdido importância porque já não seguiam as
ordens dos Estados Unidos, como haviam feito nos primeiros anos
do pós-guerra. Com Clinton, o desafio à ordem mundial alcançou
tal dimensão que começa a preocupar inclusive os analistas
políticos mais próximos da linha dura. No último número do Foreign
Affairs, a principal publicação do establishment,
Samuel Huntington adverte que, aos olhos de grande parte do mundo
(provavelmente à maior parte), os Estados Unidos «se estão a
converter numa superpotência que não respeita a lei», «a
principal ameaça externa contra as suas sociedades». Uma
«teoria das relações internacionais» realista prevê, na sua
opinião, que é possível que surjam coligações dispostas a
contrariar essa superpotência. Portanto, há motivos
pragmáticos para que os EUA reconsiderem a sua presente atitude.
Os norte-americanos que gostariam que o seu país tivesse outra
imagem poderiam pedir essa reconsideração por outros motivos
não tão pragmáticos.
Como responde tudo isto à pergunta que fazer no Kosovo? Não
responde. Os Estados Unidos escolheram um caminho que, como as
próprias autoridades reconhecem, intensifica as atrocidades e a
violência («previsivelmente», como disse Clark) e desferem um
novo golpe na ordem internacional que, pelo menos, oferece aos
fracos um grau limitado de protecção contra os Estados
predadores. A longo prazo, as consequências são imprevisíveis.
Um argumento habitual é que tínhamos de fazer alguma coisa, que
não podíamos permanecer inactivos enquanto prosseguiam as
atrocidades. Isso não é verdade nunca. Existe sempre a opção
de seguir o princípio hipocrático: «Em primeiro lugar, não
provocar danos». Se não há forma de seguir esse princípio
elementar, o melhor é não fazer nada. Há outras formas
possíveis. A diplomacia e as negociações nunca se esgotam.»
(Noam Chomsky,
professor de linguística no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, Estados Unidos)
A crise que se segue
(...) «Tanto para
os aliados como para os adversários, o ataque à Sérvia é uma
demonstração de força. Aos europeus demonstra-se, uma vez
mais, que, apesar da sua falta de unidade e da sua debilidade,
têm a sorte de contar com um parceiro tão avisado e benévolo.
Aos russos diz-se que reconheçam que na sua situação actual no
deveriam tentar actuar como uma grande potência. A mensagem para
os outros, como os recalcitrantes chineses, é que os Estados
Unidos toleram pouca oposição.
(...) O que já não é uma questão de fé é a ideia de que a
NATO é uma aliança entre iguais. O comando político e militar
da aliança não é predominantemente norte-americano; é
exclusivamente norte-americano. Os porta-vozes de imprensa
britânicos, os generais alemães e italianos e o
secretário-geral espanhol da NATO parecem-se cada vez mais aos
personagens secundários de um drama de Brecht: respondem aos
desígnios de forças maiores do que eles, mas em si mesmos são
praticamente irrelevantes.
(...) Não está muito claro por que razão agora que se acabou a
guerra fria, os europeus se mostram mais submissos, e não menos,
perante a vontade dos Estados Unidos.
É uma política que, a continuar no próximo século, pode
conduzir à catástrofe global. A frágil estrutura da ordem
internacional posterior à guerra fria ficou destruída. As
frenéticas idas e vindas dos políticos apenas ocultam a sua
total incapacidade para controlar os acontecimentos. A crise
actual é uma crise menor se a compararmos com a que poderia
estar para vir. A direita norte-americana está disposta a abrir
uma nova guerra fria: com a China. (...) Que melhor maneira de
dar crédito à ideia de poder ilimitado dos Estados Unidos do
que preparar-se desde já para o grande confronto do próximo
século? Aos europeus não se dará a opção de seguirem o seu
próprio rumo, tal como não foram escutados em relação ao
Kosovo.
(...) É improvável que da noite para o dia surge [nos EUA] um
novo grupo de dirigentes, com uma renovada devoção pela res
publica. Em todo o caso, uma nova política exigiria uma
árdua e dolorosa reeducação dos cidadãos norte-americanos, a
quem se disse que o mundo, de Pristina a Pequim, gira em torno
dos Estados Unidos.»
(Norman Birnbaum, professor no Centro de Leis da Universidade de Georgetown)
Os donos do mundo
(...) «Desde o
começo dos anos noventa, havia muitos indícios de que os
Estados Unidos já não desejavam que a ONU desempenhasse o seu
papel: a não renovação do mandato de Butros-Gali, substituído
pelo novo secretário-geral, Kofi Annan, considerado mais dócil;
a assinatura dos acordos de Dayton sobre a Bósnia sob a égide
americana e não das Nações Unidas; idem quanto aos acordos
palestino-israelitas de Wye River; a decisão unilateral da
bombardear o Iraque sem uma decisão da ONU...
Tudo indica que os Estados Unidos não aceitam o freio inerente
aos procedimentos legalistas das Nações Unidas. Damo-nos conta,
assim, de que a existência desta, ao longo de todo o século
(primeiro sob a forma da Sociedade das Nações), não era devida
ao progresso da civilização como se acreditava mas à
existência simultânea de potências comparáveis, em que
nenhuma podia ganhar militarmente às restantes.Tal equilíbrio
rompeu-se com o desaparecimento da União Soviética, e, pela
primeira vez, uma «hiperpotência» domina tenebrosamente o
mundo nas cinco esferas do poder: político, militar, económico,
tecnológico e cultural. Os Estados Unidos não vêem por que
terão de partilhar a sua soberania quando a podem exercer sem
que ninguém (nem sequer as Nações Unidas) a questione.»
(Ignacio Ramonet, director de Le Monde Diplomatique e professor na Universidade Deni-Diderot, Paris)