Tem de haver esperança

Por Urbano Tavares Rodrigues


No momento em que escrevo esta crónica está quase a acabar a guerra do tiro-ao-alvo nos Balcãs, um dos mais monstruosos crimes colectivos deste século, que o futuro há-de julgar. Porque neste semi-feriado de Junho que nos convida suavemente a fugir da cidade e da tristeza, da indignação, basta as últimas tropas sérvias saírem do Kosovo, permitindo a entrada gloriosa da Nato, e consumar-se-á a humilhação total de um povo e a destruição de um país europeu, que perdeu as suas vias de comunicação, as suas indústrias e fontes de energia, além de dezenas de milhares de vidas. Os grandes erros políticos, que os houve, de Milosevic e dos seus ministros ultranacionalistas, determinando a retirada da autonomia ao Kosovo e a proibição do ensino do albanês nas escolas, mais as violências do exército sérvio sobre civis no Kosovo durante a luta contra as forças do U.Ç.K., tudo isso, que é muito condenável, ter-se-ia resolvido por via política no quadro da ONU, não justificava o massacre sistemático e cobarde da Sérvia, as cidades bombardeadas, a população civil dizimada, os hospitais destruídos, a confusão de valores generalizada, a sementeira dos ódios.
A Europa, humilhada pelos Estados Unidos, cujo modelo económico e civilizacional se impôs ao mundo, acabou por dar-se conta do «excesso» de barbárie que a Nato diariamente derramava sobre uma terra mártir.
Apesar da gigantesca operação mediática que conseguiu mistificar grande parte da opinião pública europeia, dando a este exercício cruel de morticínio, sem perda de vidas americanas, um aparato publicitário de falsa cruzada, na própria Alemanha, na Itália, na França e – é justo dizê-lo – quase desde o começo em Portugal, ergueram-se vozes cada vez mais fortes, fora e dentro do sistema, que acabaram por forçar a paz e evitar, pelo menos, o desastre absoluto, a redução da Sérvia a uma tocha ardente, a um cadáver nacional a apodrecer.
Foi uma vergonha o que se passou e que bem mostra o poder imenso dos meios de comunicação, quando ao serviço da força e esta ao serviço de uma mentira, enfeitada com bons sentimentos.
Vai agora a Europa gastar na reconstrução do Kosovo e da Jugoslávia (e não faltará nem fora nem dentro quem a domestique, para a americanizar) o dinheiro que fazia falta para o desenvolvimento dos países economicamente mais atrasados e para o bem-estar de populações já a braços com um desemprego brutal, com a redução de regalias sociais e com o ascenso da extrema-direita precisamente nacionalista e racista. Tanta contradição, tanta vitória do egoísmo e dos vendedores de armas!

Há quase dois meses, já com a guerra a estrondear sobre a Jugoslávia e os yankes a mandarem nos céus da Europa, estava eu na Universidade de Nápoles, onde fora convidado, juntamente com outros intelectuais portugueses, a participar num colóquio sobre a obra de Soeiro Pereira Gomes.
Numa manhã muito azul de domingo visitámos as ruínas de Pompeia, a antiga cidade romana onde os fumos tóxicos do Vesúvio asfixiaram os patrícios e plebeus que ali moravam, antes que a lava, revestindo-lhes os corpos, imobilizando-os no último gesto que cumpriam, tarefa caseira ou acto de amor, assim os fixasse para sempre, patéticas estátuas do instante derradeiro.
Do majestoso pórtico ocidental olhei a perspectiva fabulosa das colunas decepadas do Forum, cuja brancura nos encaminha até ao cenário montanhoso em que se alteia o vulcão, terrível e sereno.
Já não recordo onde estive primeiro, atropelam-se-me na lembrança imagens da Casa do Fauno, do seu vestíbulo e do implúvio; os inquietantes frescos da Casa dos Vetti, alguns deles muito violentos e de um belíssimo colorido rosa, ocre, sépia, incrivelmente preservado após tantos séculos; as corridas de veados guiados por cupidos, a fúria de Hércules criança despedaçando as serpentes; a riqueza da casa de um novo-rico, chamada dos eros dourados, o Forum Triangular e a arquitectura fantástica do que resta do Teatro Grande, quase só o cenário e a plateia semi-circular.
Aves negras, muito brilhantes, no azul hialino da cúpula celeste devoravam a luz do sol. Abria-se, do lado do mar, o grande portal dos sonhos e das memórias. Consultei o guia, que falava um francês de Marselha, muito arrastado, e ele mostrou-me os lugares onde foram Herculano, que eu já havia visitado na juventude, e Cápua, Sorrento, o Posilipo, os longes da ilha de Cápri. Era um dos espaços privilegiados da virtus romana. Ali Petrónio, caído em desgraça, abriu as veias e se deixou morrer, num banho perfumado com flores.
Pompeia desapareceu, há 2000 anos, na fronteira de duas eras da Humanidade: o mundo clássico, com o seu epicurismo estóico, ainda ligado à ideia do eterno retorno – e à minha volta rebentava a Primavera –, a uma idade primordial de perfeita harmonia entre o homem e a natureza, a um passado atemporal; e a era cristã, voltada para a eternidade, frente ao vazio budista, a que se opõe.
Para Octávio Paz, mexicano europeu e orientalista, há muitas semelhanças entre os mundos primitivos da bacia do Mediterrâneo, berço da Europa, e os da América Índia, que acreditavam na morte e ressurreição do tempo cíclico. Para os aztecas, os mayas e os incas, o símbolo da era primordial era o jade, enquanto para os povos da Hélada era o ouro. A idade de ouro, a da paz e da comunhão humana, que os navegadores e os grandes viajantes queriam ver projectada no Incário, é um sonho recorrente, da Renascença ao Iluminismo.

Os marxistas, que não concebem a própria felicidade sem a felicidade dos outros, olham de frente a face radiante do futuro. É o mito do homem novo. Mas o mito ruiu parcialmente antes do fim do século. Muitos dos que, como eu, continuam, sem desfalecimento, a luta contra o capitalismo global, por uma democracia socialista justa e humana, deixaram, no entanto de crer em paraíso e infinitude, contentam-se com o relativo, admitem que, após uma ou duas gerações de igualização e sincronia das liberdades, de democracia integral, possam regressar a ambição desenfreada, a corrupção, o desprezo pelo outro, essas grandes virtudes do chamado neoliberalismo que hoje governa o mundo.
Não esqueci ainda os momentos de pesado sofrimento – cárcere, isolamento, tortura – em que, dando o balanço à minha existência, a sentia justificada menos pela minha arte de escritor do que pelo facto de me integrar numa grande corrente de esperança e combate, que brilhava no rio da História, rumo à certeza de um mundo decente, sem exploração, sem novos escravos.
A certeza tornou-se apenas probabilidade e está adiada. O império do dinheiro, da violência e da hipocrisia que subjuga a Europa e a que Portugal não escapa é asfixiante. Mas o movimento de massas, em todo o mundo, não pode abrandar a sua luta. É o nosso posto. Nuvens escuras, que nem parecem de Junho, toldam esta outra manhã de derrota. Mas de muitas derrotas fazem-se vitórias. Que é a pós-modernidade no plano do que se aguarda da vida como esperança ou sentido?, qual o seu horizonte de expectativa? Tê-lo-á?, ou será o caos?
Neste momento, só lobrigo o consumismo, o luxo inútil, o desejo do imediato, tudo o que faça esquecer a agonia da natureza, a explosão demográfica e a miséria, a dificuldade de ter emprego, a desconfiança de todas as receitas políticas…
E, contudo, o homem é cada vez mais senhor da árvore do saber. É verdade.
Como eram já verdade os milagres da tecnologia quando eu passei por Aden, no Iémen, há muitos anos, numa manhã ainda mais sombria do que esta (e havia em Portugal o fascismo); poucos dias antes vira no Paquistão, perto de Karachi, um areal de prata, não exactamente de prata, de mica, agora observava uma falésia do inferno (o do Dante deverá ser assim), ontem, hoje, aqui, em Aden, entre homens de turbante sujo, britando pedras enormes, suando muito, lianas de sangue vermelho apertando as nuvens e o vento de sebo, que se lhes escapava, em baixo o mar era muito salgado e morno, mas tínhamos nadado durante uma vida; crianças privadas de pão e de luz andavam à nossa volta, na praia, pedindo dólares; eu dei-lhes o que tinha, seria pouca coisa (se aquilo não era o inferno!…) e os pais escravos, os sísifos de Aden, deixaram por instantes os blocos de rocha com que se defrontavam e que pareciam a todo o momento poder esmagá-los e vieram apertar-me, apertar-nos as duas mãos com os seus dedos de febre, nodosos, as unhas famintas.

Ontem. Hoje. Tem de haver esperança, para lá de todas as lições de incerteza que a História nos dá. Tem de haver esperança.


«Avante!» Nº 1333 - 17.Junho.1999