Volódia
Teitelboim
e o convívio entre a política e a literatura
Por Miguel Urbano Rodrigues
A obra de Volodia Teitelboim contraria a opinião segundo
a qual todo o escritor, por mais criador e fecundo que seja,
repete sempre o mesmo tema. Escrevo com atraso sobre um livro que
andou aos tombos entre Santiago e Havana, antes de me chegar às
mãos. O título intriga sem explicar muita coisa: «Antes del
olvido Un muchacho del siglo XX» (1).
O moço é ele e o
século aquele que está prestes a findar. O livro difere de tudo
o que antes publicou.
Novelista, ensaísta, poeta na juventude, Volodia tornou-se
mundialmente conhecido, como escritor, pelas suas biografias.
Ninguém escreveu como ele sobre os grandes da poesia chilena -
Gabriela Mistral, Pablo Neruda e Vicente Huidobro.
A critica, sobretudo no seu pais, embora reconhecendo-lhe o
talento e o valor da obra, falou o menos possível dos seus
livros durante décadas. Volódia Teitelboim era uma figura
destacada do movimento comunista internacional e isso incomodava.
Senador, membro da Comissão Política do Partido Comunista do
Chile e mais tarde seu secretário-geral e presidente, projectava
no mundo uma imagem que a direita chilena não queria
engrandecer, emoldurando-a com a glória literária.
Volódia caminhou sempre dividido entre dois amores dificilmente
conciliáveis: a política e a literatura. Somente no inverno da
vida a burguesia chilena reconheceu a evidencia: aquele comunista
tao exorcizado era, afinal, um dos maiores escritores do Chile e
da América Latina.
A critica identificou neste ultimo livro as Memórias de
Volódia. Mas a obra não cabe no molde. Ele rejeita também o
qualificativo. Escreve na primeira pessoa. Mas sobretudo como
espectador. A grande personagem é o Chile do seu tempo e, para
alem dele, o mundo do século XX, a época e o espaço em que o
homem Volódia viveu e lutou. A opção chilena fecha, de alguma
maneira, o leque dos leitores. A riqueza da reflexão sobre
factos e pessoas exige um conhecimento mínimo da realidade para
que o movimento e a transformação da vida sejam plenamente
apreendidos. O constante vaivém entre o particular e o universal
confere à obra uma dimensão de grandeza, mas não facilita a
transmissão de muitas das mensagens.
Essa ambição despojada de vaidade fragiliza, mas Volódia deixa
transparecer que escreve mais para as gerações futuras do que
propriamente para os chilenos de hoje, modelados por uma ditadura
que fez do Chile actual uma nação invertebrada e sem memória.
Um dos segredos da atmosfera encantatória do livro é
precisamente a harmonia da arquitectura de pontes que o autor
estabelece entre o presente e o passado. O Volódia que contempla
e recorda o Volódia dos l5 ou dos 20 é simultaneamente a
continuação e o resultado de ambos, mas não sente o mundo
envolvente como eles. «A continuidade - escreve - é a viagem. A
viagem da infância à velhice. A viagem do mundo, a viagem do
tempo, a viagem que nos percorre por dentro e também nos muda
por fora (...) Nesse menino está o velho, e no velho está o
menino, mas quem é, quem são?
Uma identidade a caminhar. Um ser humano em rodagem».Para quem
como eu se tornou amigo do Volódia da maturidade, nos seus anos
de exílio, não é fácil ver o Volódia que sentia
deslumbramento ante as rupturas cósmicas da poesia de Huidobro,
acompanhá-lo quando, frenético, descobria o prazer da luta, a
política, a aventura da criação literária no Chile do inicio
dos 30, dividindo-se entre a Universidade, a Sociedade dos
Poetas, a redacção do jornal onde trabalhava e as veladas na
sede da Juventude Comunista, buscando ainda horas livres para
estudar nas bibliotecas.
Há neste livro ímpar capítulos que lidos na Europa por quem
não conhece a América Latina (a quase totalidade) vão deixar
não apenas o sabor de novidade absoluta, mas uma sensação de
estórias de contornos extraterrestres. É o caso das paginas
dedicadas à prodigiosa aventura que
teve por personagem o comodoro Marmaduke Grove. Esse cometa
político tomou o poder em Santiago a 4 de Junho de 1932. Com a
ajuda das Forças Armadas depôs o presidente Estevan Montero,
substituiu-o na chefia do Estado e proclamou a Republica
Socialista do Chile.
Empolgada, a juventude concluiu que uma revolução a sério não
podia ser feita por militares burgueses. Faltava-lhe algo
fundamental. Os estudantes tomaram a Universidade e convocaram o
povo a formar nada menos que «Sovietes de operários,
camponeses, mineiros, soldados e marinheiros».
Constituíram-se Milícias Populares. Foram dias de um louco
entusiasmo revolucionário. Mas durou pouco a euforia. A primeira
republica socialista das Américas acabou a l7 de Junho, 13 dias
depois de nascer, derrubada pelo Exército.
Revi Volódia faz um ano, em Santiago. Em longas conversas, na
sua acolhedora casa, confidenciou-me que este Muchacho del Siglo
XX é uma introdução a outros tomos da mesma obra. Dobrados os
82 anos, o autor de «Hijo del Salitre» conserva um vigor
intelectual que impressiona. O seu estilo depurou-se com os anos.
Nunca escreveu tão bem e os desafios da viragem do milénio
funcionam como estimulo à reflexão sobre acontecimentos,
situações, pessoas que se fizeram parte da historia
contemporânea. O seu olhar sobre um mundo que é hoje memória
cada vez mais brumosa ajuda a compreender, no Chile e no planeta
Terra, a crise global da civilização em que a humanidade está
mergulhando. A admiração e o respeito que o escritor hoje
suscita evoluíram para uma tal unanimidade que até El Mercúrio
o grande diário que foi e continua a ser o templo da
direita chilena lhe dedica paginas inteiras no seu
suplemento cultural.
Precisamente pelo distanciamento e a serenidade que o fazem
trazer a política para a vida, Volódia intercala a cada passo,
na historia, humanizando-a, episódios de que foi testemunha em
que a poesia, o amor, a ambição ou a desambição condicionam o
que fazer da aventura humana. Por si só, os retratos de algumas
mulheres que o Chile, por motivos diferentes, não esquece
compõem uma deslumbrante galeria de figuras femininas atípicas.
Neste livro sempre inesperado, o combatente que Volódia foi
desde a adolescência é uma presença inalterada, a marcar o
rumo do intelectual, eterno namorado da ideia de revolução.
Volódia continua a ser - como Álvaro Cunhal - um optimista. Aos
que negam a possibilidade de revoluções futuras e falam do fim
da historia, responde: «É como dizer que o homem terminou, que
no cosmos cessarão para sempre as tempestades, que os ventos
ficarão mudos e as nuvens fixas. Há tempos de fluxo e tempos de
refluxo. É certo. Mas a Revolução é uma ideia infinita,
porque a mudança é a lei da vida. A sua pratica conhecerá
fracassos. E dir-se-á: está sepultada para sempre. Mas ela é
como a semente que se enterra, germina por baixo e um dia brota
de novo à flor da terra.
Aqueles que procuram a mudança profunda terão de armar-se de
paciência, converter-se em corredores de fundo, especializar-se
em travessias do deserto».
Em Volódia, o poeta, apesar das dificuldades de uma convivência
complexa, manteve um dialogo permanente e intimo com o comunista.
«(...)para mim o comunismo - revela - era realizar os sonhos do
ser humano e entre eles estava o direito a ser ele próprio, a
procurar a beleza na mulher, na palavra, em todas as gradações
e titubeios da luz que nasce e da que se decompõe no ocaso do
sol».
Recordar aos 80 anos a descoberta do amor é um enorme desafio.
Volódia assume-o. Não se pode ser autenticamente
revolucionário sem amar o amor. As paginas finais do livro são
dedicadas à irrepetível e magica experiência que é para todo
o homem sensível o primeiro encontro com o amor, na fusão do
que é espiritual e do que é físico, na busca do absoluto, da
ilusão breve de que um mais um pode ser igual a um. Ao escrever
sobre a sua descoberta do amor Volódia atinge um nível
comparável ao que de melhor, mais profundo e belo nos deixou
Hemingway sobre o mesmo tema.
Numa entrevista a El Mercúrio, Volódia declarou há tempos que
a politica foi para ele a sua mulher legitima e a literatura uma
amante fidelissima.
Não me falou de datas para a continuação de Un Muchacho del
Siglo XX. Mas quando nos reencontramos ofereceu-me tres livros de
recente publicaçao: uma biografia de Jorge Luís Borges, uma
colectânea de ensaios sobre escritores europeus e um trabalho em
que regressa a Neruda. A literatura está no autor de «La
Semilla en la Arena» a tirar a desforra de épocas de
convivência difícil com a política.
(1) Volodia Teitelboim, Antes del Olvido Un Muchacho del Siglo XX, Edi. Sudamericana, Santiago, 1997