A Talhe de
Foice
A
ideia
No sábado transacto, o cronista do Diário de Notícias
Ricardo Leite Pinto surgiu com um texto intitulado «A vitória
da ingerência humanitária». Nela, as asserções expendidas
resumiram, quase matricialmente, algumas ideias sobre a «nova
ordem internacional» que andam por aí fazendo caminho desde que
a NATO se declarou vencedora da «guerra humanitária» com que
agrediu a Jugoslávia.
Mondando-se-lhe a retórica, atamancada com referências
históricas escolhidas a dedo, o raciocínio do cronista Leite
Pinto emerge numa simplicidade assustadora.
Primeiro, lamenta que os seres humanos tenham vivido «durante
largos anos sobre o domínio exclusivo dos Estados», resultando
daí que «massacres, torturas, genocídios, tudo ficava ao
abrigo da intervenção externa em razão da omnipotente figura
da soberania estadual».
Identificado este sofrimento da Humanidade, o cronista invoca
René Cassin, segundo ele, «um dos pais da Declaração
Universal dos Direitos do Homem», que «pelo menos desde 1947
vinha pugnando pela consolidação de um verdadeiro direito de
ingerência que, assente na identidade transnacional da pessoa
humana, permitisse perseguir e punir os crimes contra a
humanidade onde quer que eles se verificassem».
Assim estribado, Leite Pinto exulta e conclui: «Uma ideia tão
generosa como esta, que começa agora a ver a luz do dia e que
passa da teoria à prática, bem merece ser enaltecida. Trata-se,
no fundo, de fazer com que todas as pessoas do planeta fiquem na
protecção directa e imediata da comunidade internacional».
Ou seja: em nome da «identidade transnacional da pessoa
humana», a «comunidade internacional» pode e deve, a partir de
agora, «perseguir e punir os crimes contra a humanidade onde
quer que eles se verifiquem».
Ficam por saber várias coisas essenciais.
Por exemplo, quem é «a comunidade internacional» e quem a
autoriza a agir.
Ou quem localiza, identifica e prova «os crimes contra a
humanidade» e com que direito os julga e os condena liminarmente
à punição.
Basta olharmos para a amostra de «ideia generosa» com que a
NATO «protegeu a pessoa humana» na Jugoslávia, para
verificarmos quão sinistras já são as respostas a estas
perguntas.
Por um lado, quem decidiu a agressão à Jugoslávia não foi a
«comunidade internacional», que engloba todos os países e
povos do mundo, nem sequer a NATO no seu conjunto: foi quem tem o
poder e nela manda.
Por outro, caem por terra os «crimes contra a humanidade» como
alibi para a NATO se transformar no carrasco da Jugoslávia,
quando continuam impunes os genocídios dos timorenses pela
ditadura de Jacarta, dos curdos pelo regime turco, dos sérvios
pela Croácia, dos índios da América Latina por regimes
brutais, de povos africanos por ditadores sanguinários, etc.,
etc., etc.
Finalmente, os aliados da NATO não só estão longe de
corporizarem a «comunidade internacional» como, efectivamente,
agiram contra a organização que, melhor ou pior, a representa
a Organização das Nações Unidas.
Nesta «ideia generosa» que, para gáudio do cronista Pinto,
«começa agora a ver a luz do dia», o que já ficou claro é
que os EUA e adjacências estão a fazer regredir a Humanidade
para a barbárie da lei do mais forte.
A mesma que neste século desembocou em duas Guerras Mundiais, a
primeira desencadeada em nome da tal «comunidade internacional»
e a segunda já com alguém a arrogar-se o direito de se sobrepor
a ela.
Esse alguém foi o nazi-fascismo das potências do Eixo. Henrique
Custódio