Eduardo em balanço



Mal as trombetas da nova ordem comunicacional anunciaram o «fim da guerra» - sublinhando, pertinentemente, que os bombardeamentos iriam continuar - apressou-se Eduardo Prado Coelho a metralhar-nos com o seu «Primeiro balanço» sobre o processo. E diga-se desde já que Eduardo em balanço é o exemplo acabado de uma vítima da danos colaterais na coluna vertebral. Por recear ter ido longe demais nas críticas que, antes, fez à Nato?; por saber que os senhores da nova ordem mundial fascizante não são para brincadeiras e podem, um dia destes, entrar-lhe em casa e lá vai disto?; por ter concluído que, afinal e bem vistas as coisas, mais vale viver de joelhos do que morrer de pé?; por hábito e feitio?: sabe-se lá que caminhos conduzem a um Eduardo em balanço e capaz de, entre outros notáveis feitos, produzir (infelizmente entre parêntesis) a luminar e originalíssima tese de que («a intervenção da Nato em muitos aspectos foi mais orientada pelo voluntarismo dos dirigentes europeus do que pela vontade política norte-americana»). Curvemo-nos perante este soberbo exercício de inteligenciação!

Mas o essencial do balanço de Eduardo pode sintetizar-se numa frase: viva a Nato e a sua estratégia de paz - o que, na circunstância, é o mesmo que dizer: viva a morte. Compreensivo em relação aos «acidentes de percurso» ocorridos e aos «cerca de cinco mil mortos», Eduardo em balanço voltou a ser o apoiante aguerrido e entusiástico da matança do Iraque e trouxe-nos à memória os seus textos de então: a coragem e o rigor com que elogiou o massacre e assobiou para o ar face aos cerca de 300 mil mortos, civis na sua maioria, provocados pelas inteligentes e humanitárias bombas do então presidente Bush. Hoje, apenas mudaram os nomes das moscas que esvoaçam sobre o seu texto: agora o fascínio de Eduardo vai para a arrogância fascizante de Clinton, para o servilismo rastejante de Blair, para a impune postura de criminoso de guerra de Solana, para o sadismo doentio de Shea. E estou em crer que Eduardo terá exultado com o ameaçador gesto de paz que foi a «suspensão dos bombardeamentos» - anunciada primeiro por Clinton e, depois, pelo seu criado Solana - que antecedeu a ocupação do Kosovo por milhares de botas cardadas.

Mas é ainda em balanço que Eduardo, corajosamente indiferente ao ruído das bombas explodindo sobre escolas, hospitais, bairros residenciais, se interroga: «Todos aqueles que pretendiam um regresso à paz tinham alguma solução alternativa para que se obtivesse uma paz como aquela que neste momento se está a instalar na região?». Esperto como só ele, este Eduardo em balanço: numa simples frase arma-nos duas ratoeiras fatais - faz nossa a sua concepção de que «uma paz como aquela» é paz, e decreta que quem não propõe uma solução não tem direito a ter opinião. E remata fulminante: «Agora que se chegou a uma 'saída', a pergunta é: haveria outra?».
Não, Eduardo, para «uma paz como aquela» não havia outra «saída». Porque parar os bombardeamentos, pondo termo a um dos mais bárbaros genocídios praticados neste século, e discutir, negociar, dialogar até encontrar uma solução não era, óbviamente, a paz de Clinton, nem de Blair, nem de Solana, nem de Shea. Nem de Eduardo, portanto. — José Casanova


«Avante!» Nº 1333 - 17.Junho.1999