Por
dentro
da canção «pimba»
Por Correia da Fonseca
Em plena situação já de naufrágio, a
gestão de programas da TVI lançou mão do cantiguismo dito
«pimba» para conquistar audiências que permitam à estação
manter-se à difícil tona de água. Fê-lo sem quaisquer
escrúpulos ou problemas de consciência, nem parece, aliás, que
José Eduardo Moniz seja homem para grandes pruridos desse tipo,
mas em verdade não haveria grandes motivos para isso: o
«pimbismo» é muitíssimo democrático, pois apenas acata o que
parece ser o gosto maioritário do público e, para mais, está
muito de acordo com as sagradas leis do deus Mercado que mandam
vender ao consumidor a droga que ele procura. Assim nasceu nas
estratégicas noites das sextas-feiras a rubrica «Os Reis da
Música Nacional», título aliás curioso porque tem um travo de
monarquia mítica, género conto de fadas, e conotação com um
entendimento dos valores «nacionais», e não talvez mais
simplesmente portugueses, que é capaz de cair bem em ouvidos
nacionalistas eventualmente sensíveis à saudade da «Assembleia
Nacional», da Emissora Nacional, de outras instituições
nacionais.
Na verdade, só por um excesso seria possível censurar com
grande aspereza a TVI por ter recorrido ao apoio do Universo
Pimba, passe por agora o exagero que esta expressão contém,
numa situação que lhe era de vida ou de morte: a canção
pimba, que aliás não é mais que a versão actual da canção
medíocre de sempre e cujas fronteiras estão longe de serem
nítidas, tem sido bem acolhida por todo o lado, com natural
destaque para a RTP1 e para a incomparável promoção que
resulta do «Made in Portugal». Acresce que a música pimba tem
merecido referências muito compreensivas, se não simpáticas,
por parte de homens cuja cultura, incluindo a musical, e o
espírito progressista são indiscutíveis e indiscutidos, o que
por vezes impressiona até ao desconcerto. Tudo isto aconselha a
que avancemos com cautelas neste terreno mais difícil do que
pareceria.
Enganar, embalar
Por muito que já se
vá sabendo que é de pouco rigor separar forma e conteúdo, bem
como a música e as palavras no caso de uma canção, é quase
inevitável que o façamos, como que por facilidade de ordem
prática, quando sobre canções se queira discorrer um pouco.
Assim, não será excessiva audácia dizer que a pobreza musical
do cançonetismo pimba é sua característica e uma das razões
por que é rejeitado por quem ambiciona para a canção mais do
que sol-e-dó dançável. Porém, parece certo que são as
palavras que mais determinam essa mesmíssima rejeição,
convindo aqui lembrar que a cantiga rigorosamente pimba tem
directa relação com uma brejeirice nos casos mais «hard»
vizinha da obscenidade, como é documentado pelo repertório de
Quim Barreiros, que por ele bem merece o cognome possível de Rei
do Lixo. Nestes casos, a rejeição do pimba justificar-se-á
pela recusa em aceitar o avacalhamento do sexo até nível da
anedota com pejoração da sensualidade, o que é uma outra face
do puritanismo hipócrita.
Trata-se, como bem se entende, de uma forma de falsificar a vida
e de agredir a sua legitimidade. Porém, falsificação da vida
é também a modalidade «soft» da canção pimba, agora a mais
corrente: aquela vasta área a que talvez pudéssemos chamar a
Galáxia Ágata cultiva o que afinal não é mais que a
reedição actualizada do cançonetismo convencional e melado que
já há décadas era versão musicada da subliteratura de cordel.
Chamaram-lhe então nacional-cançonetismo para que ficasse
denunciada a sua função coadjutora e afluente da modalidade de
nacional-socialismo que nos tiranizava. Contudo, integrada na
função política estava a viciação de natureza cultural que
falsificava o real e produzia efeitos analgésicos e
soporíferos. Neste sentido, a canção pimba é, ironicamente,
uma canção de embalar. É também isso, é talvez sobretudo
isso, que se rejeita na corrente mais branda do pimbismo
dominante em várias zonas do actual cançonetismo português e
agora entronizado em «Os Reis da Música Nacional», da TVI.
Entenda-se: não é que Emanuel, Ágata, Ruth Marlene, Mónica
Sintra e homólogos tenham propósitos ou sequer sonhos de
natureza política: o que eles querem é ganhar a sua vida menos
mal, o que é natural e legítimo. Tão-pouco lhes passará pelas
cabeças terem o menor resquício de acção anticultural, nem
esse é território que lhes interesse. Não obstante, só por
extrema ingenuidade poderia supor-se que um produto musical,
mesmo menor, não teria significado e efeito cultural, ou que um mass
media como a canção também é poderia ser vazio de
autêntica informação ideológica. Aliás, com inteira
percepção disso ou não, tem forçoso significado a óbvia
simpatia com que a canção pimba é encarada pelos que dominam
os grandes meios de comunicação. O caso é que eles não são
parvos nem distraídos. Façamos a nós próprios o favor de
também não o sermos.