Kosovo
Promessas de paz
e partilha do poder


O Exército de Libertação do Kosovo (UCK) e a KFOR assinaram domingo à noite em Pristina um documento que estabelece a desmilitarização do UCK. Até ao momento, trata-se de um gesto mais mediático do que prático, já que os homens das fardas negras se encontram espalhados por toda a região, dominam aldeias e vilas, perseguem e matam sérvios indefesos.

Segundo o comandante da KFOR, o general britânico Michael Jackson, o documento assinado com Hashim Thaçi, dirigente do Exército de Libertação do Kosovo, numa cerimónia em que também esteve presente o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, James Rubin, «não é um acordo, mas um compromisso unilateral do UCK, conforme as recomendações do Conselho de Segurança». O significado deste «compromisso» é bastante vago. Não foi certamente por acaso que Jackson sublinhou as divisões existentes entre os independentistas albano-kosovares, enquanto manifestava a esperança que todos os «comandantes locais do UCK respeitem o compromisso do seu comando». A questão está em saber se existe de facto um comando centralizado e quais as suas intenções.
O texto do «compromisso» prevê que o UCK abandone, no prazo de 30 dias, as suas posições de combate, os uniformes, as insígnias, os controlos de estrada e os edifícios públicos, e que entregue as armas pesadas e deixe de transportar espingardas e armas de assalto.
O texto apela ainda aos rebeldes para manterem o cessar-fogo, expulsar todos os membros estrangeiros e respeitar as autoridades de manutenção da paz em matérias de segurança.

Situação complexa

A súbita conversão de Thaçi suscita muitas dúvidas, até nos seus mais próximos aliados. Em contacto telefónico com o presidente dos EUA, Bill Clinton, Thaçi comprometeu-se «a proteger os direitos de todas as minorias», afirmando ter « uma visão idêntica à de Clinton quanto ao Kosovo: um governo autónomo que trabalhe segundo os princípios democráticos e proteja os direitos humanos», segundo o porta-voz da Casa Branca, Michael Hammer. Quanto ao presidente norte-americano, qualificou o compromisso «de etapa importante» e afirmou que «trabalhará em contacto estreito com o povo kosovar em favor de uma verdadeira autonomia», ainda de acordo com Hammer.
Menos optimistas estão os responsáveis militares norte-americanos. Num estudo recente, citado pela Lusa, a direcção de planeamento político e estratégico do Pentágono advertiu que a possibilidade de o poder no Kosovo cair nas mãos do UCK levará a uma maior desestabilização nos Balcãs.
O relatório avisa que uma tentativa do UCK para conquistar a independência do território ou tornar o Kosovo parte de uma «grande Albânia» provocará o envolvimento na região de países como a Turquia e mesmo outros países muçulmanos, provocando uma reacção imprevisível de países vizinhos.
«Não haverá qualquer consequência positiva» de um desenvolvimento desse tipo, alerta o relatório, sublinhado que mesmo um controlo «modesto» do poder por parte do UCK criará circunstâncias contrárias aos interesses ocidentais.

 

Os bons e os maus

O acordo, que afinal é um «compromisso», para a desmilitarização do UCK impôs-se como uma necessidade urgente em meados da semana passada, quando os ataques do UCK em Vucitrn, a norte de Pristina, assumiram proporções impossíveis de escamotear.
As armas calaram-se ali depois da intervenção do contingente francês, mas os «incidentes» registam-se por todo o lado.
Em Prizren, três centenas de civis sérvios, dos quais 10 religiosos ortodoxos, incluindo o bispo Artemije, foram atacados pelo UCK no mosteiro da Virgem de Ljeviska.
De acordo com o Patriarcado das Igrejas Ortodoxas da Sérvia, o mosteiro da Tridade, em Musutiste - perto de Prizren -, que data do século XV, foi incendiado.
Várias freiras foram violadas. Um ancião de 70 anos foi morto. Obras de arte sacra foram danificadas, passando a ostentar o símbolo dos independentistas.
A estátua do imperador Dusan, em pleno centro de Prizren, foi demolida.
Entretanto, em Podgorica, um jovem de 16 anos foi morto durante um ataque lançado pelo UCK na passada quinta-feira contra um comboio de refugiados sérvios que regressavam ao Kosovo a partir do Montenegro. A emboscada foi desencadeada perto da localidade de Savine Vode, a cinco quilómetros da fronteira com o Montenegro, quando cinco dezenas de sérvios tentavam regressar às suas casas em Pec (oeste da província).
No domingo, uma bomba explodiu junta da Universidade de Pristina. No dia seguinte, as tropas francesas voltaram a ter de intervir para pôr cobro aos saques em Grace, perto de Mitrovica, e para combater os incêndios ateados pelo UCK contra habitações sérvias.
Segundo as forças da NATO, os responsáveis por actos deste tipo, que se repetem por todo o lado, são da responsabilidade de algumas facções «não controladas» do UCK. Os «bons» já assinaram um «compromisso» de bom comportamento.

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Benesses para o UCK

Hashim Thaçi designa-se a si próprio «primeiro-ministro» do governo provisório do Kosovo. Também Ibrahim Rugova tem um governo provisório para a região, mas a sua estrela parece estar a perder brilho. Thaçi assinou o compromisso de desmilitarização total do UCK num prazo de 90 dias e em troca recebeu algumas contrapartidas.
Segundo os dados disponíveis, o processo decorrerá por fases: até hoje, quinta-feira, o UCK comprometia-se a abandonar os postos de controlo e combate que ocupa; até sábado, a dar a conhecer a localização dos seus depósitos de armas; num período de trinta dias a abandonar os uniformes e a entregar as armas de calibre superior a 12,7 milímetros (com excepção de pistolas, metralhadoras e armas de caça); até ao fim do prazo o desarmamento total.
As negociações preliminares decorreram em Tirana, conduzidas pelo representante do Departamento de Estado norte-americano, James Rubin.
Em troca do desarmamento, o UCK recebe várias benesses. Os «especialistas» em ordem pública (?) ascendem à categoria de candidatos - presume-se que preferenciais - à futura polícia multiétnica a criar pela ONU; a comunidade internacional prestará a «devida consideração» ao papel do UCK no Kosovo e tê-lo-á em conta na formação, «em devido tempo», de «um Exército do Kosovo» segundo o modelo da Guarda Nacional norte-americana (dependente da autoridade regional), «no futuro estatuto» da região.
Teoricamente, cabe às Nações Unidas estabelecer a nova administração civil e de segurança para o Kosovo, em colaboração com as forças políticas da região.
Após o acordo com os EUA, Thaçi reafirmou publicamente que «não abandona o seu objectivo de criar um Estado separado», dentro de três anos. Até lá, garante não proceder a vinganças nem a interferir com o previsto regresso dos polícias sérvios a quem caberá vigiar os monumentos, as fronteiras e acompanhar a desminagem do Kosovo.
Na ocasião, Thaçi voltou a convidar Ibrahim Rugova para conversações, tendo em vista a formação do Governo autónomo. «Há espaço suficiente para ele no Kosovo e pode ajudar muito no processo político», disse Thaçi.
A formação do Governo autónomo do Kosovo, recorda-se, deveria ser supervisionada pelas Nações Unidas, e resultar de um processo democrático.

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Jogos de bastidores

O manifesto interesse dos EUA em consolidar a liderança de Hashim Thaçi, de 31 anos, em detrimento do «histórico» Ibrahim Rugova, aponta para uma estratégia que pode vir a revelar-se perigosa. A facilidade com que Thaçi, cujo controlo sobre o UCK é muito duvidoso, abandonou aparentemente as teses independentistas, sugere acordos de bastidores de imprevisíveis consequências no terreno.
Analistas norte-americanos fazem notar que o UCK tem demonstrado ter muito pouco controlo centralizado, estando dividida em facções e clãs que poderão eventualmente, não só escolher a via da confrontação com a NATO, como também envolver-se em combates entre si. As mesmas fontes dizem que há a possibilidade de a «desmilitarização» do UCK ser apenas uma operação «simbólica», já que as diversas facções continuarão a esconder a maior parte das suas armas. A total liberdade com que os separatistas entraram no Kosovo, na esteira das forças da NATO, e a sua liberdade de movimentos, é significativa.
A expectativa do poder levou milhares de pessoas a engrossarem as fileiras do UCK, e a luta pela partilha do poder está agora na ordem do dia no Kosovo.
Como afirma Miranda Vickers, especialista em história e política da região do Kosovo e analista no Grupo de Estudos para Crises Internacionais, os «próximos meses serão tempos difíceis no realinhamento do poder entre os dirigentes kosovares».
«Alguns elementos do UCK vão encontrar sérias dificuldades em adaptar-se às condições de paz,» diz Vickers, para quem a credibilidade de Ibrahim Rugova é agora quase inexistente, «excepto junto de uma pequena minoria de famílias ricas e influentes».
Tendo em conta a popularidade do UCK, há quem defenda que a única solução viável é «profissionalizar a organização, rodeá-la de conselheiros da NATO e da ONU e amarrá-la institucionalmente» à administração civil a instalar pela ONU no Kosovo. Outros consideram que se deve continuar a apostar nas divisões entre as diferentes facções. Como de costume, os EUA preparam-se para apoiar quem melhor sirva os seus interesses. Neste contexto, vale a pena reter as declarações do primeiro-ministro britânico, Tony Blair, numa entrevista à televisão norte-americana ABC.
Questionado sobre o futuro das relações NATO-UCK, Blair declarou que os separatistas albaneses «terão um forte grau de autonomia», que «não é o que eles queriam mas é melhor do que o que tinham».
«Poderemos discutir mais tarde qual será o destino final do Kosovo», acrescentou Blair, sublinhando que «muito dependerá do que se passar na Sérvia, do que se passar com Milosevic». Aos aliados cabe, afirmou, «tudo fazer para que o povo sérvio compreenda (...) que a Sérvia não poderá reintegrar a verdadeira família das nações (...) sem a partida» do presidente jugoslavo. Uma decisão que não consta do «acordo de paz» para o Kosovo, em que explicitamente se refere o respeito pela integridade territorial da Jugoslávia, e que, à luz das mais elementares regras democráticas, deveria caber aos jugoslavos decidirem. Livremente.


«Avante!» Nº 1334 - 24.Junho.1999