Na ressaca, serenamente

Por Sérgio Ribeiro


Cada acto eleitoral é - deve ser, tem de ser - um momento privilegiado de reflexão sobre o País que somos, sobre o Partido que somos no País que somos. Não porque as eleições sejam toda, ou sequer a mais importante, intervenção política no País em que queremos ser, e em que queremos ser com o contributo indispensável do Partido que tomámos. Porque nós, os que deste Partido somos, tomámos partido. E dele não abdicamos. E o partido que tomámos foi o dos trabalhadores, foi o do povo português.

Já o tinha sentido. Decerto com atraso relativamente a outros camaradas, há muito vinha sentindo mudanças que estas campanha e eleições para o Parlamento Europeu vieram tornar ainda mais evidentes.
Milhares e milhares de quilómetros, centenas de debates, pequenas sessões, encontros, visitas, reuniões - com estruturas sindicais, com organizações de trabalhadores, com administrações de empresa, com associações sectoriais -, muita informação e esclarecimentos mútuos, têm necessariamente de provocar reflexão sobre o que está diferente da(s) última(s) vez(es), sobre o que mudou e o que está a mudar. No País, e no modo como o Partido sente e reflecte o País, como o País vê e aceita (ou não) o Partido.
Dir-me-ão que há locais próprios para essa reflexão, que nesses locais próprios ela está a ser feita e ainda que, relativamente às eleições acabadas de realizar, até já o mais substancial dessa reflexão foi logo feito em reunião do Comité Central.
Não o nego, bem pelo contrário!, mas acrescento que cada militante também é local próprio para essa reflexão. E esta tribuna é, por sua vez, espaço para reflexões de um militante.

De bastiões...

Nos meados dos anos 50, quando Champalimaud veio dos cimentos para o aço, para o que procurou e arrebanhou à sua maneira muitos apoios, como o de um alvará que o condicionamento industrial exigia e que conseguiu através de Spínola & irmão - facto pouco conhecido mas que não me canso de lembrar -, houve reservas e franzires de sobrolho do ditador Salazar.
Porquê? Porque Salazar temia concentrações operárias, assustava-o a perspectiva de se juntarem milhares de trabalhadores do aço, de metalúrgicos!, ainda por cima na orla norte de um Sul onde o proletariado agrícola, criado pelo latifúndio, não lhe inspirava a tranquilidade da paz podre e da repressão instalada que desejava e que o PCP perturbava. Como o contrariava a evolução internacional e... os ventos da História.
Mas Salazar, o "Botas", não podia fazer parar esses ventos, que da História eram, e com a CEE, a EFTA, a guerra colonial, a emigração, Portugal mudou muito na década de 60. Os grandes grupos económicos ganharam, nalguns casos, dimensão industrial, a Siderurgia não ficou sozinha na metalurgia, surgiram estaleiros navais importantes (Lisnave, Setenave), apareceram polos até Vila Franca de Xira, na Amadora e outras periferias de Lisboa.
É verdade que o têxtil e os concentrados tornaram-se relevantes actividades industriais mas, para a reflexão que pretendo "arrumar", sublinho o peso e a localização da metalurgia e afins.
Em termos de luta política, e sem preocupações académicas, parece possível dizer-se que o PCP assentou a sua força, como partido da classe operária, na chamada cintura industrial de Lisboa, com outros bastiões no proletariado agrícola, no Alentejo e em Alpiarça, e também na zona industrial vidreira da Marinha Grande de heróicas tradições.
Isso ter-se-á traduzido, inevitavelmente, nas expressões eleitorais dos primeiros actos de democracia representativa após o 25 de Abril. E poderá talvez afirmar-se que assim se prolongou com alterações quantitativas que, no entanto, não justificavam que se deixasse de encarar o PCP como um partido descontínuo, de bastiões fortes.
A distribuição espacial do poder local melhor o mostrava. A força do PCP estava concentrada, quase diria emblematicamente, no distrito de Setúbal, no Alentejo, nos concelhos de Amadora, Loures, Vila Franca de Xira, Alpiarça, Marinha Grande.
Com a entrada para a CEE, hoje UE, com a desvalorização das actividades produtivas, com as privatizações, com o desmantelar dos estaleiros, a destruição da Siderurgia e desmembrar da metalurgia pesada, com a agricultura em pousio, com a crise na indústria videira, a alteração na estrutura económica tinha de arrastar mudanças sociais e políticas.
Os grandes grupos recuperaram posições de influência e domínio na política, transnacionalizaram-se e financeirizaram-se, o que apareceu de novidade foi ligado à distribuição, mas também aqui com uma vertente transnacional. E é útil lembrar que os grupos dominantes de antes de 1974 se caracterizavam por serem mais domésticos que internacionais.

... a círculo único

Na viragem das décadas de 80 para 90 e na primeira metade desta foi notória a mudança no espectro político-partidário. Em contexto e evolução internacionais muito desfavoráveis, com o aparelho produtivo desvalorizado face à distribuição, finança e especulação, com uma enorme concentração e centralização do poder económico (melhor: financeiro), abundaram os sinais de mudança político-partidária.
A quebra de influência no distrito de Setúbal, a perda de concelhos como Marinha Grande, Amadora, Vila Franca, por último Alpiarça, poderiam até prefigurar uma rampa descendente para que, aliás, não faltaram referências de evoluções lá por fora.
No entanto, no entanto... o Partido, com surpresa de cangalheiros apressados e reincidentes, aguentou-se. Se muito perdeu nos bastiões, ganhou influência e intervenção onde antes não a tinha, onde antes até fora e estivera banido. Aqui numa Junta de Freguesia, ali numa vereação, acolá numa assembleia municipal. Sempre na luta, trabalhando em defesa dos trabalhadores, sempre procurando resolver problemas do povo. Credibilizando-se.
As "europeias", como eleições de círculo único, são apropriadas para esta análise (análise a fazer, que outros terão mais adiantada e aqui fica apenas enunciada). Entre 1989 e 1994, no Continente, apenas em três concelhos subimos a votação (em Ourém e em dois pequenos concelhos do distrito de Viseu), mas já entre 1994 e 1999 observámos a continuação das descidas nos ditos bastiões - nos distritos de Beja, Évora, Setúbal, talvez merecendo ser assinalada uma excepção no concelho de Alpiarça - e subidas em número de eleitores por todo o País, com duplicação na RA da Madeira e com algum significado em Aveiro, Braga e Coimbra. É certo que mantendo-se grandes diferenças, mas confirmando tendências.
Este panorama eleitoral é, apenas, um dos muitos ângulos por onde observar a realidade e a sua dinâmica. Temos de saber usar os dados desta observação para melhor conhecer a realidade e as suas mudanças. Só assim somos e seremos revolucionários.
Vai mudando a realidade. Nós, que fazemos parte dela, com ela mudamos e, se queremos transformá-la - e queremo-lo! -, temos de mudar por forma a podermos continuar a ser o que sempre fomos. Um partido dos trabalhadores. De classe.


«Avante!» Nº 1334 - 24.Junho.1999