A Talhe de Foice
Confortos
Óleo de camiões nas rações dos frangos,
resíduos de chumbo na Coca-Cola, vacas loucas por causa de
farinhas de origem animal, alimentos transgénicos vendidos à
surrelfa, um país arrasado no centro da Europa na guerra mais
barata de todos os tempos, o anticiclone dos Açores à deriva, a
camada de ozono esburacada, Cachemira à beira da guerra nuclear,
milhões de pobres a morrerem de fome, países ricos a braços
com a obesidade, o El Niño a virar o clima de pernas para o
ar... se os deuses não estão loucos, os homens estão-no de
certeza. É por estas e por outras que o ciclone da Madeira, mais
conhecido por Alberto João Jardim, é um reconforto para o
espírito, um porto seguro a que sempre se pode voltar quando à
nossa volta o mundo parece desabar.
Nos tempos da minha infância, e ao contrário do Manuel da
Fonseca, o centro do mundo não era o adro mas a telefonia da
avó Antónia, uma caixa de madeira com um remendo de pano que se
iluminava ao rodar um dos botões imponentes do friso inferior,
tossia e engasgava-se como um tractor decrépito, aquecia
circuitos com demoras de donzela, mas acabava sempre por nos
trazer para dentro de casa os mistérios do universo. A telefonia
era então uma espécie de totem familiar, ocupava um lugar nobre
no seio da família e tinha direito a naperon e jarra de flores.
Quando a pressa de crescer encolheu os espaços e a vida começou
a mudar muito depressa, a televisão destronou a telefonia e a
maior parte de nós meteu pés ao caminho na convicção de que
lá fora, lá longe, havia outros horizontes que não cabiam no
éter. Foi preciso a saturação destronar a televisão e dar a
volta ao mundo para perceber que afinal estava tudo lá, no
começo das coisas.
Perguntar-se-á que tem Jardim a ver com tudo isto. Pela parte
que me toca, tudo. Igual a si próprio, turbulento, belicoso,
destemperado, o homem aprendeu em pequenino que é possível
fazer tempestades em copos de água, mas se for numa ilha tanto
melhor. Faz o mesmo efeito e estremece menos. Depois de dar a
volta ao mundo - do "contenente" à África do Sul e
às Américas - reconheceu que a Madeira é um jardim e daí à
conclusão que a Madeira é do Jardim foi um passo de um anão.
Arranjou um governo regional à sua medida, uns papalvos para
pagar as contas, e tomou as rédeas do poder. Inventou um
espírito "anticolonial" e contestatário que conserva
no frio e a que recorre sempre que os ventos não sopram de
feição. Fez o percurso do subversivo bombista ao democrata
plebiscitado nas urnas. Apurou até ao limite a arte do populismo
e do embuste. Fez colecção de sacos azuis e de cartões de
visita dos adversários, que manobra segundo as conveniências.
Aprimorou-se no discurso desbocado ao ponto de se tornar
inimputável. Numa palavra, armazenou os ventos com que faz as
suas tempestades privadas. Por isso é que, nestes tempos virados
do avesso, Jardim é um descanso.
A Assembleia da República prepara-se para aprovar escandalosos
aumentos nos vencimentos, subvenções e abonos de ajudas de
custo dos governantes e deputados regionais? Pois bem. Lembrado
da contestação popular aos aumentos secretos de 1990, que o
obrigou a congelar a iniciativa, Jardim jogou agora pelo seguro e
apresentou não só uma contraproposta «mais modesta», como
entendeu por bem desviar as atenções e vir a público
reivindicar a transformação da Madeira em Estado Regional, para
que os madeirenses deixam de estar «sujeitos às leis gerais da
República» e não terem de «mendigar a pessoas estranhas do
Continente o seu próprio Estatuto». Nem mais.
Imagina-se o frémito que percorreu os ilhéus. Contam-se as
cabeças entre os emigrantes. Adivinha-se já a solidariedade da
NATO.
Quando terminar o debate em torno da inconstitucionalidade da
proposta os aumentos já terão sido aprovados a contento de
todos. E digam lá se não é bom saber que algumas coisas nunca
mudam. Anabela Fino