A casa e as trancas


Sem grande surpresa, Champalimaud reagiu com a arrogância do autocrata a quem o poder político concedeu toda a espécie de favores e a quem tudo tem consentido.
Desta vez, o velho monopolista da ditadura fascista não hesitou em desafiar a autoridade do Governo de António Guterres ao anunciar que manteria a venda de importantíssimas posições do seu grupo financeiro aos espanhóis do Banco de Santander, poucas horas depois da mesma ter sido vetada pelo ministro das Finanças.
O presente escândalo põe em evidência duas consequências fatais da política de direita, seguida pelo governos do PSD e do PS, em relação às quais os comunistas portugueses, além de se lhe oporem com firmeza, fizeram repetidas advertências e chamadas de atenção.
A primeira, refere-se aos perigos a que a economia portuguesa ficou exposta quando foi feita a privatização de sectores financeiros estratégicos, como acontece no caso vertente, com a iminência de uma grande fatia do mercado bancário português ficar sob o controlo do colosso financeiro espanhol.
A segunda, tem que ver com o crescente domínio do poder económico sobre o poder político, o que no caso vertente se exibe com especial brutalidade, começando pela criação de um facto consumado de grandes repercussões económicas à margem de qualquer consulta às autoridades portuguesas e acabando com a proclamada desobediência às determinações destas.
É bem sabido como se chegou a este estado de coisas.
No que se refere a Champalimaud, foram todos os «favores», à custa do património do Estado e de terceiros, que lhe foram cumulados pelos governos de Cavaco Silva, como ficou demonstrado no relatório da Comissão de Inquérito da Assembleia da República. Foi graças a estes «favores» que o velho monopolista pôde reconstituir o seu império financeiro do tempo da ditadura sem praticamente investir quaisquer recursos próprios.
Aos «favores» de Cavaco Silva seguiram-se os favores de António Guterres. O primeiro lesando grave e ilicitamente o Estado para beneficiar este grande senhor do capital, o segundo servindo de encobridor, para que ele pudesse prosseguir sem perturbação os seus magestáticos negócios.
Sabe-se agora que a cambalhota dos deputados do PS que impediu a aprovação do relatório da Comissão de Inquérito sobre os «favores» irregulares e ilícitos prestados pelos governos de Cavaco Silva a Champalimaud foi o resultado de negociações entre este e o Governo. Há mesmo quem diga que é a «ingratidão» de Champalimaud perante este novo «favor» governamental o que mais terá ofendido o primeiro-ministro e o ministro das Finanças.
O assomo de firmeza que levou o Governo de António Guterres a vetar a venda de parte substancial do grupo Mundial Confiança aos espanhóis do Banco de Santander não pode deixar de ser visto com simpatia, mas também não pode deixar de ser visto, por tudo que fica atrás, com alguma desconfiança.
A primeira razão de desconfiança é se este assomo de firmeza governamental não tem um significado idêntico ao do conhecido aforismo «depois de casa arrombada, trancas à porta». Sendo que, neste caso, as trancas têm meros objectivos eleitoralistas, preparando-se o governo para ceder em face das pressões de Champalimaud, da imprensa, dos meios financeiros e do governo espanhóis e de eventuais pressões de diferentes instâncias da União Europeia. Mas neste caso, Guterres proclamaria nos seus discursos eleitorais que fez tudo que era possível para resistir, mas perante as pressões teve de ceder, alegando como é costume: «é a vida».
A segunda razão de desconfiança é se as trancas não visam afinal franquear outros caminhos aos assaltantes do património público. A verdade é que o noticiário revela que tem sido o governo a incentivar processos de concentração financeira alternativos à operação do Santander, não hesitando em agitar a apetecida privatização da Caixa Geral de Depósitos para estimular a gula dos banqueiros, incluindo do próprio Champalimaud.
Estas manobras em torno da CGD devem por isso mesmo merecer uma atenção redobrada por tudo o que ela representa na vida social do país e nas pequenas economias dos portugueses de mais modestos recursos e também pelo seu importantíssimo papel estratégico na defesa da nossa economia. As próprias manobras do Governo no plano financeiro põe em evidência a especial importância deste papel. Se ainda há trancas com verdadeira importância para proteger esta pequena casa que é a economia nacional, a CGD é certamente uma delas.
Rematando: - O que se deseja, no entanto, é que o assomo de firmeza expresso na declaração do Ministro das Finanças, de 18 de Junho, seja verdadeiro e autêntico e não vergue às pressões. — Carlos Brito


«Avante!» Nº 1334 - 24.Junho.1999