As mãos do dono


A recente «Convenção nacional do PS» constitui, a vários títulos, motivo de séria reflexão. Na verdade, o que se passou no Coliseu, no Sábado passado, não foi apenas mais um espectáculo abrilhantado pelo ridículo e pela hipocrisia; nem mais uma operação mediática de caça ao voto; nem mais um banal desfile de apoiantes do partido do Governo, muitos a agradecer ou a solicitar um tacho; nem mais uma mascarada de diálogo e de abertura democrática... É certo que foi tudo isso mas, sem dúvida, foi algo mais do que isso. De facto, no Coliseu teve lugar uma cerimónia estranha, que nos trouxe à memória tempos e práticas que se julgavam definitivamente mortos e enterrados. Tratou-se de uma muito peculiar celebração do poder, da exposição de uma ambição sem margens nem fronteiras rumo ao poder absoluto, com todos os ingredientes necessários. Porque o poder absoluto precisa de um «chefe» – um e apenas um! – idolatrado, lá estiveram o chefe e os idólatras. Guterres apareceu munido de um discurso que se anunciava, e foi, «emotivo, intimista, preparado ao milímetro para fazer marejar os olhos à audiência» («Público», 5.6). E fez: a audiência, reverente, atenta e obrigada, chorou. E o que estava previsto aconteceu: Guterres passou para outra dimensão, para a dimensão do homem providencial, do salvador do povo e da pátria, do chefe portador de um todo poderoso mandato divino e em cujas «boas mãos» devemos depositar-nos.

«Portugal em boas mãos», o slogan dias antes disparado sobre o País, instalou-se na tribuna da «Convenção» e ali ficou até ao fim, omnipresente, ameaçador, exibindo ostensivamente o seu conteúdo possessivo, asfixiante, carregado de maus presságios. Lendo-o nos imensos placards que todos os dias nos saltam à vista, assalta-nos o receio de que aquelas «boas mãos» que querem agarrar Portugal, se preparam para nos agarrar a cada um de nós, e aos nossos filhos e aos nossos amigos e aos nossos vizinhos... O cartaz, tal como o discurso de Guterres e toda a cerimónia do Coliseu, ostenta a arrogância de quem tem como certa a conquista do poder absoluto. E olhando-o, fica-nos a sensação incómoda de que estamos a ser alvo de qualquer mensagem subliminar, de que onde está escrito «em boas mãos» deve ler-se «em fortes garras» - e percebemos a razão pela qual as «boas mãos» ocuparam o lugar que ocuparam na «Convenção»; e percebemos a cerimónia de sagração de Guterres ali concretizada pelos aduladores de profissão, cujos fizeram o que lhes era exigido, cumprindo com empenho e fervor o beija-mão. Claro ficou, assim, que um país nas «mãos» de um indivíduo – seja ele quem for e por muito «boas mãos» que diga ter – é um país com a criatividade sufocada, com a inteligência hipotecada, com o futuro suspenso – porque é um país fechado nas mãos do dono.

A memória do chefe molda, rigorosamente, a memória do povo e a sua palavra é a verdade absoluta e incontestável quer em relação ao passado quer no que respeita ao futuro. Assim foi, pelo menos e para já, no Coliseu dos Recreios. Guterres, na sua oração, lembrou ter cumprido na íntegra os compromissos ali mesmo assumidos há quatro anos e demonstrou-o, não com factos mas com palavras: «As marcas aí estão e nada as poderá apagar da vida política». Ninguém o contestou, todos o aplaudiram. Olhando para o específico microcosmos do Coliseu como se do País se tratasse, o «povo» confirmou viver no melhor dos mundos.
Entretanto diz-nos um estudo vindo a público há dias que «os portugueses só atingirão os níveis de qualidade de vida dos cidadãos da União Europeia no ano 2028». E outro estudo mostra que, dos quinze países da União Europeia, Portugal é aquele em que é maior a concentração da riqueza, ou seja, que Portugal está em primeiro lugar na lista das desigualdades. E o Banco de Portugal informa que o endividamento das famílias portuguesas, que em 1998 correspondia a 66% do seu rendimento, anda agora na casa dos 90%, pelo que, «no ano 2000 uma típica família portuguesa poderá correr o risco de entrar na falência». Eis as «marcas», as tais que, segundo Guterres e o seu auditório do Coliseu, «nada poderá apagar»...

No dia seguinte, a «Convenção» saíu à rua, desceu ao povo...E o que se passou no Encontro de Idosos de Bragança é uma amostra do que nos espera nos próximos tempos. Perante cerca de 12 mil idosos, que haviam sido transportados em 250 autocarros, Guterres mostrou as «mãos». «O que os idosos recebem é pouco para o que o país vos devia dar», declamou com a voz embargada embora num registo diferente do da véspera. E prometeu mais e mais apoios – o país está «em boas mãos», não é verdade? – e foi beijado e beijou tudo quanto era idoso.
É claro que não se sabe quantos dos 12 mil idosos que em Bragança santificaram o «chefe» têm reformas não superiores a 33 contos e para os quais o dinheiro tem um valor diferente dos que, no Coliseu, glorificaram Guterres. Mas é evidente, e o Primeiro Ministro sabe-o, que uma dúzia de promessas e meia dúzia de patacos dão para comprar muitos e muitos voto de idosos.
Ainda em Bragança, e embalado na caça ao voto dos 12 mil indefesos eleitores, aos quais há que dizer não a verdade mas o que eles querem ouvir, Guterres criticou as «famílias que têm idosos nos lares, quando podiam e deviam tê-los em casa». Dizendo o que disse, o Primeiro Ministro talvez tenha ganho mais uma dúzia de votos mas ofendeu e insultou milhares e milhares de portugueses que, com esse problema, sofrem como ele nunca sofreu.

Como afirmou Carlos Carvalhas no comício de Domingo passado, «o País não precisa do poder absoluto, nem de mais arrogância, ou de hipocrisia dialogante; precisa sim de uma política mais justa, mais séria, que vá ao encontro dos problemas e das aspirações dos portugueses e das portuguesas». Ou seja, «o País precisa de uma viragem à esquerda, o que passa necessáriamente pelo reforço do PCP e da CDU». É isso que vai estar em causa nas eleições legislativas e é por isso que a eleição de mais deputados da CDU se coloca como a questão maior do próximo acto eleitoral. Acresce que a actual legislatura mostrou com clareza a superioridade do trabalho dos deputados comunistas, quer na qualidade quer na quantidade. «Proporcionalmente, a bancada do PCP foi a mais laboriosa nesta legislatura em São Bento. Apresentando mais iniciativas legislativas do que qualquer outro grupo parlamentar» - reconhece o «Diário de Notícias» na sua edição de 4 de Julho. Mais deputados da CDU na AR será o melhor contributo para que Portugal esteja nas mãos que deve estar: as do seu Povo.


«Avante!» Nº 1336 - 8.Julho.1999