Extinção da JAE
PS desfaz-se duma sigla incómoda

Por Francisco Lopes
Membro da Comissão Política do CC do PCP


A extinção da Junta Autónoma das Estradas (JAE) e a sua substituição por três institutos, que o Governo PS acaba de decidir, não contribui para pôr fim a práticas que levantam graves suspeitas de corrupção. Serve para alijar um nome, uma sigla que se tornou incómoda quer ao PSD quer ao PS, visa prosseguir e levar mais longe a privatização das funções do Estado ao serviço dos grandes grupos económicos lesando o interesse público, põe em causa os direitos dos trabalhadores e institui afinal um modelo que pode potenciar tudo o que de mais negativo se passou até aqui.

A JAE, entidade responsável pela rede rodoviária nacional, foi usada como suporte de propaganda da eficácia na realização de obras públicas pelos Governos do PSD e do PS, que subordinaram o alargamento da rede rodoviária do país a critérios eleitoralistas.
A JAE passou contudo a andar nas "bocas do mundo" por graves suspeitas de corrupção. As acusações do seu ex-presidente em Outubro de 98, abalaram o Governo. Os inquéritos que estas desencadearam não foram até hoje conclusivos, como quase sempre acontece em casos que envolvem o grande capital e as suas conexões com o poder político, mas permitiram ventilar várias situações e avolumaram suspeitas como as que decorrem das declarações de um ex-administrador sobre contactos feitos por um responsável político, cujo nome não quis referir, para saber da situação de determinada empreitada.
Por outro lado o relatório do Tribunal de Contas recentemente divulgado é por sua vez revelador da situação existente. Ausência ou deficiência de estudos preliminares; lançamento de obras em fase de ante-projecto; deficiências de projecto; alterações profundas em fase de execução; adjudicações lesivas do interesse público - há um pouco de tudo isto na base do disparo de custos, que em média ultrapassou em 77% o previsto e que no período em análise (86/97) se traduziu num acréscimo de gastos de cerca de 44 milhões de contos, com que o erário público foi sobrecarregado, em obras a mais.
O país precisava e precisa, nesta área, de uma entidade pública responsável que promova a rede rodoviária nacional como factor de desenvolvimento integrado, de melhoria da qualidade de vida e de promoção das actividades económicas. O país precisava e precisa que se ponha termo a práticas de corrupção e nepotismo, que sejam apuradas as responsabilidades até ao fim e, custe a quem custar, que sejam punidos os responsáveis. O país precisava e precisa de uma gestão eficaz, competente, honesta e transparente que vise exclusivamente o interesse público.

Multiplicar problemas

O Governo extinguiu a JAE e em sua substituição criou três institutos públicos: o Instituto das Estradas de Portugal (IEP), instituto promotor e coordenador do desenvolvimento das infra-estruturas rodoviárias a quem competirá exercer os deveres do Estado no domínio do planeamento estratégico e operacional, na procura e gestão de recursos, na regulamentação e no fomento e gestão de concessões; o Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR), instituto para a construção dos empreendimentos rodoviários planeados, que assume as competências previstas para a JAE Construção, S.A., também extinta; e o Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), instituto para a gestão da rede construída.
É um modelo de estrutura que não só não dá garantia de resolver os problemas detectados, como pode vir a potenciar muitos deles.
É um modelo que se insere no prosseguimento e aprofundamento de uma orientação de amputação das funções do Estado, remetendo para os organismos públicos apenas um papel de regulação, angariação de recursos, promoção de concessões e portanto de financiamento dos lucros dos grupos económicos privados a quem é entregue a construção, conservação e exploração das estradas.
É um modelo que estabelece e dá força a um caminho que encarece as obras e a exploração da rede e tende a degradar a qualidade do serviço.
É um modelo que promove em mais larga escala a confusão entre o interesse público e os negócios dos consórcios privados, que exercem uma influência crescente e ditam a regra do máximo lucro.
É um modelo que contraria a recomendação constante do já citado relatório do Tribunal de Contas quando este preconiza a organização de um sistema integrado de planeamento, programação, orçamentação, execução e controlo e de coordenação com planos de pagamento e tesouraria, uma vez que dispersa funções por três entidades diferentes, com três Conselhos de Administração, dificulta uma visão de conjunto e limita a coordenação recorrendo a uma solução altamente centralizada no presidente do IEP que por inerência é também presidente do ICOR e do ICERR.
É um modelo, enfim, que coloca o enorme risco, tendo em conta outros exemplos, de a criação de raiz de toda a estrutura funcional dos novos institutos, com os poderes discricionários que os Conselhos de Administração nomeados pelo Governo têm nessa matéria, se traduzir na montagem de um aparelho preenchido por inúmeros boys, à medida do PS e dos interesses dos grupos económicos que o seu governo não pára de favorecer.

Contra os trabalhadores

Mas se todos estes aspectos lançam as maiores dúvidas sobre este processo é particularmente condenável o facto de o Governo PS, pondo em causa a negociação colectiva, ter atingido os interesses e direitos dos 2600 trabalhadores da JAE.
O Governo quer empurrar os trabalhadores para a aposentação ou para o estabelecimento de um contrato individual de trabalho que levaria à perda do vínculo à função pública e aos direitos inerentes. Para aqueles que recusem o contrato individual de trabalho está vedado o direito de acesso livre ao IEP e ao ICOR, pois só terão acesso a trabalhar nestes institutos com autorização dos Conselhos de Administração respectivos. No ICERR, instituto em que foi criado um quadro de disponíveis – chamado quadro especial transitório – para os trabalhadores que queiram manter o vinculo à função pública, o Governo está a usar a decisão de instalar a sede deste instituto em Coimbra, para comprometer o direito de vinculo de muitos trabalhadores dos serviços centrais da JAE que têm a sua vida organizada com base no actual local de trabalho, em Almada.
É igualmente inaceitável e revelador da forma como o actual Governo trata os trabalhadores, que a decisão de extinção da JAE e de implementação dos três institutos tenha, de um dia para o outro, posto em causa as funções e responsabilidades de centenas de trabalhadores, cuja continuação está agora dependente da decisão discricionária dos Conselhos de Administração nomeados pelo Governo.
Tratou-se não de apurar responsabilidades de quem teve comportamentos desonestos seja ao nível dos trabalhadores, dos serviços técnicos, das chefias ou das administrações, tomando as medidas correspondentes, mas de pôr em causa as funções de trabalhadores e responsáveis honestos, capazes e dedicados ao longo de muitos anos, havendo o sério risco de virem a ser substituídos por quem não adopta esses valores como conduta.

A favor do capital

A JAE e o processo da sua extinção, inserem-se numa acção mais vasta de desmembramento da Administração Pública e de ataque ao papel do Estado com a sua desresponsabilização e a privatização das suas funções, de delapidação do património público e da sua entrega ao grande capital, de um crescente domínio dos grupos económicos e financeiros e dos seus valores sobre a economia e a vida nacionais, de uma situação que é marca comum da política dos Governos do PSD e do PS.
São criadas as figuras de Institutos, Sociedades Anónimas, Fundações e outras estruturas com total confusão entre o público e o privado, com os dinheiros públicos a financiarem e a gestão e os interesses privados a dominarem. As concessões proliferam e tudo isto esvazia as funções do Estado, afrouxa a tutela e o controlo administrativo, fundamental para a garantia do interesse público e a transparência dos processos, facilitando os fenómenos de corrupção e nepotismo.
A situação criada impõe o desenvolvimento da luta dos trabalhadores e das suas organizações representativas em defesa dos postos de trabalho e dos direitos, luta que é simultaneamente um contributo para a defesa do interesse público e para tornar possível, uma política alternativa, uma política de esquerda.
O PCP tornou clara a sua posição e manifestou e manifesta a sua solidariedade e apoio aos trabalhadores da Junta Autónoma das Estradas. Os trabalhadores da JAE contaram e podem contar com o PCP. O PCP precisa também de contar com o apoio dos trabalhadores da JAE. O reforço do Partido Comunista Português é o factor determinante para a defesa dos interesses dos trabalhadores e do país, para tornar possível uma política de esquerda para Portugal.


«Avante!» Nº 1336 - 8.Julho.1999