Os Deo Gratias do Poder
Por Lino de Carvalho
Estávamos descansadamente a ver o
telejornal do último sábado quando, de repente nos entrou casa
dentro, durante longos minutos, a Convenção de arranque da
campanha eleitoral do Partido Socialista. Muito Vangelis, muitos deo
gratias do poder, muitas palavras "afectuosas" do
Engº Guterres cuja lista de promessas terá sido previamente
distribuídas pelos circunstantes para evitar que, depois, o
discurso que o Secretário-Geral do Partido Socialista ia
proferir os incomodasse com minudências. Para o Engº Guterres
estava reservada, pela enésima vez, a cena do intimismo, do
afecto, de como os pobres do Bairro da Curraleira o atiraram para
a política. Um must, como dizem nos espectáculos.
Estávamos nós nisto quando, neste tempo de antena do PS,
começaram a passar depoimentos dos "independentes"
convidados. E um deles, Simoneta Luz Afonso, teve a mais
esclarecedora declaração da razão porque estava ali, na
Convenção socialista. Explicou-nos então a destacada
intelectual, que nos habituou a reflexões lúcidas enquanto
responsável de vários e importantes eventos culturais, que era
funcionária pública e que os funcionários públicos tinham a
obrigação de estar com o Governo porque senão o melhor era
procurarem outro trabalho ou ficavam sem emprego. Não sei se foi
excesso de zelo da parte da ilustre convidada socialista mas juro
que foi isto que ouvi. E isto, só por si, vale por todo um
programa de caracterização da forma como o PS usa o poder e o
respectivo aparelho para impor a sua influência. Não se
desenvolve uma cultura democrática de saudável convívio e
combate plural sem arregimentações. O que se alimenta é uma
cultura de colagem ao poder e de utilização desse poder para
alargar artificialmente a presença do PS na sociedade. De
confusão e fusão entre o Estado e o partido que
conjunturalmente está no poder. É assim um pouco por todo o
País. O PS multiplicou, ao longo desta legislatura, as
estruturas paralelas do aparelho de Estado para melhor o
controlar e para encaixar os seus quadros políticos e os seus
"compagnons de route". Estruturas de coordenação
daquilo que já era coordenado por outras estruturas. É o caso,
por exemplo, da criação de uma estrutura a que deram o nome de
Pro.Alentejo, dirigida por um alto responsável regional e
nacional do PS, e que tem como alegada função articular os
programas de financiamento comunitário existentes para a
região. Articulação que é feita (ou deveria ser) pela
Comissão de Coordenação da Região Alentejo. Ou a
multiplicação de Institutos Públicos, designadamente na área
da cultura, outra forma de criar lugares e protagonismo para os
seus quadros políticos e, simultâneamente, procurar fugir à
fiscalização da Assembleia da República e do Tribunal de
Contas. A expressão de há quatro anos "jobs for the
boys" não foi só uma expressão de circunstância.
Tornou-se, ao longo do consulado PS, um verdadeiro instrumento de
preenchimento do poder. Com os "boys" alargados a quem
se foi dispondo a acolher-se ao chapéu do poder. E, então, se
caminharmos para a área da informação e da comunicação
social os exemplos multiplicam-se como cogumelos. A RTP e as suas
delegações regionais tornaram-se verdadeiras antenas do PS. A
transmissão, em diversos blocos, desta Convenção do PS é
disso exemplo. As delegações regionais, por sua vez, alegam,
para não cobrir as actividades da oposição, que não têm
agenda política. Mas este princípio já não funciona para a
cobertura das insistentes viagens de membros do Governo a tudo
quanto é País em vésperas de eleições. As delegações da
agência de notícias, designadamente nas regiões que o PS tenta
dominar, como no caso do Alentejo, funcionam estreitamente
vinculadas aos aparelhos locais do PS. E a política de
subsídios á imprensa regional tem funcionado, salvo raras
excepções, para o Governo e o PS disporem de órgãos dóceis
ou, no mínimo, para os neutralizar.
Espectáculo
Foi tudo isto que
perpassou pela Convenção do PS. Seguramente que pouca gente
sabe o conteúdo do que foi debatido. As propostas de
governação que foram feitas. As críticas ao que não foi
feito. Mas toda a gente viu e sabe que lá estiveram muitos
alegados independentes, figuras sonantes da socialite
portuguesa, funcionários públicos obrigados a prestar
vassalagem ao poder na significativa confissão de Simoneta da
Luz Afonso. Como assinalou o director do Diário de Notícias
"boas almas, agora regeneradas, vindas de todos os
quadrantes do espectro político, foram recebidas de braços
abertos, num espectáculo mais próprio de uma igreja de
inspiração sul-americana do que de um partido europeu e
moderno".
É nesta mesma linha que se insere a iniciativa do PS de pôr os
Governadores Civis (pelo menos alguns já o fizeram) a editarem
luxuosas publicações apresentadas como balanço da legislatura.
Prestar contas do trabalho feito e dos compromissos não
executados não tem em si nada de mal. Antes pelo contrário. O
problema está não só no facto de o Governo apresentar nessas
publicações investimentos da iniciativa, responsabilidade e
financiamento das autarquias locais e dos agentes económicos de
cada zona (bem como, obviamente, na ocultação do que não fez)
mas na forma como o Governo promove a distribuição dessas
publicações. Envia-as para tudo quanto é departamento da
administração publica com instruções aos respectivos
dirigentes para as distribuir funcionário a funcionário e para
as colocar, discretamente, dentro dos dossiers de informação
que são entregues aos cidadãos quando recorrem aos serviços
públicos. Ao pé disto Cavaco Silva era um menino de coro.
Batalha desigual
É também por isto que as próximas eleições para a Assembleia da República não vão ser uma batalha fácil. O espectáculo vai, cada vez mais, sobrepor-se ao debate e á informação séria. A arregimentação de quem está, de alguma forma, dependente do poder e predisposto a ser arregimentado vai ser o pão nosso de cada dia. A utilização do poder de Estado vai ser levado até ao extremo. As armas com que vamos intervir nessa batalha são brutalmente desiguais. É por isso que se impõe a definição, com rigor, dos meios que temos e da sua melhor e mais eficaz utilização. Valorizar o trabalho feito e o contributo do PCP como partido que conta e é necessário para um País com menos desigualdades, mais justiça social e mais democracia. Romper por entre o espectáculo impondo, onde for possível, o debate do que não foi feito e das propostas para os próximos quatro anos. Combater a bipolarização e o desejo incontido do PS em chegar á maioria absoluta. Alertar para a tentativa de mexicanização do poder. Acentuar (e não esvaziar) as componentes ideológicas do discurso político. Convocar todo o Partido e aqueles que vêem nos comunistas uma força sólida, séria, de crítica e de projecto, que trabalha e é necessária para uma governação á esquerda. Entrar na campanha com confiança, força e determinação. E preparemo-nos para as sondagens para todos os gostos. Dos 3% do Diário de Notícias aos 9% do Semanário elas já começaram a chegar e vão infalivelmente multiplicar-se até ás eleições. O caminho tem muitos escolhos mas a imagem, o trabalho e o prestígio do PCP dão-nos confiança. Até Outubro.