A tragédia jugoslava
e a covardia dos intelectuais

Por Miguel Urbano Rodrigues


Muitos anos vão transcorrer antes do aparecimento de uma história da tragédia jugoslava que ilumine bem as suas facetas contraditórias e a situe no contexto da crise global de civilização que a humanidade enfrenta na viragem do milénio. A confusão principia na própria identificação daquilo que conferiu aos acontecimentos ali ocorridos um carácter trágico.

O que para uns foi a essência da tragédia — a guerra de agressão a um país soberano, concebida e comandada pelos EUA, sob a bandeira da NATO — aparece a outros como uma iniciativa político-militar necessária, imposta por exigências éticas e humanitárias.
Na grande maioria dos casos as motivações da segunda posição não são claras. Dezenas de milhões de pessoas, sobretudo na Europa, não têm consciência de que foram decisivamente condicionadas por um bombardeio mediático desinformativo, cientificamente planeado e executado. O funcionamento dos mecanismos da revolução técnico-informática transformou um monstruoso crime numa cruzada pela humanidade através de uma gigantesca operação mediática que excedeu em perversidade a da guerra do Golfo.
Um dos aspectos preocupantes e pouco estudados dessa massacrante campanha é aquele que envolve a posição dos intelectuais. Uma percentagem anormalmente elevada da intelligentsia de esquerda aceitou os argumentos invocados para a intervenção na Jugoslávia, embora apenas uma minoria insignificante tenha aceitado os bombardeamentos.
O fenómeno é particularmente chocante em países como a França e a Itália.
Esse comportamento não foi uniforme ao longo das 11 semanas de bombardeamentos. Refiro-me exclusivamente, insisto, aos intelectuais progressistas, pois as tomadas de posição dos sociais democratas integrados no sistema e dos representantes da direita reflectiram em estilos diferentes o oportunismo que as ditou. Em Portugal, por exemplo, as piruetas de gente como Mário Soares, Pacheco Pereira e Prado Coelho, nem merecem ser comentadas, porque as mudanças de perspectiva traduziram apenas a falta de seriedade e de convicções que assinala o seu caminhar pela vida. Contra a guerra ou fazendo depois vénias à NATO estiveram sempre e somente jogando.
O que impressiona por inédita é a atitude de outro tipo de intelectuais — muitos deles com destacada participação em grandes lutas sociais do nosso tempo e respeitados pela sua integridade — que condenaram desde o início a agressão à Jugoslávia. Uma parcela ponderável da intelligentsia, apesar de se opor à guerra imperial e de exigir o seu fim, não quis ou não conseguiu demarcar-se com clareza da campanha de perversão mediática e acabou por aceitar argumentos dos agressores, sem disso se aperceber.
A massacrante orquestração sobre a chamada purificação étnica e a diabolização de Milosevic produziram um tal efeito na opinião pública que muitos intelectuais progressistas se sentiam na obrigação de incluir no discurso esses temas cada vez que se manifestavam contra a guerra e condenavam a barbárie da NATO.
Esse tipo de concessões aflorou concretamente em documentos – alguns circularam pelo mundo — assinados por personalidades de prestígio mundial. Li alguns. Não foi sem tristeza que vi nomes como os de Pierre Bourdieu, Rossana Rossanda, Francis Wurtz, Vidal Naquet e Edward Said em papéis que, não obstante conterem a condenação frontal da guerra, incluíam parágrafos que enfraqueciam os apelos formulados, ao desequilibrarem o texto nas referências inadequadas aos acontecimentos do Kosovo.
Nunca escrevi uma linha em defesa de Milosevic, e lamento que o Kosovo se tenha transformado numa terra de confrontação violenta entre comunidades que ainda há poucos anos ali conviviam pacificamente. Mas satanizar hoje Milosevic e os sérvios é não somente morder no anzol lançado pelo imperialismo norte-americano, fazer-lhe neste momento o jogo, como resvalar para uma visão redutora e deformadora da história.
Em artigo recente (9.6.99) alertei os leitores do «Avante» para a feroz campanha desencadeada contra Regis Debray na imprensa da França, após a publicação pelo diário «Le Monde» (13.5.99) de uma carta daquele escritor ao presidente Chirac. Por uma vez nos últimos anos Debray, excepcionalmente, assumiu uma causa justa. Contou o que viu em breve visita ao Kosovo e a outras regiões da Jugoslávia. Não lhe perdoaram ter desmontado o folhetim da «purificação étnica».
Raramente em França, tantos políticos, escritores e jornalistas de convicções tão diferenciadas se uniram para desancar com tamanha cólera um intelectual.
Cabe perguntar por que motivo os escritores e jornalistas não apenas da França, mas da Alemanha, da Inglaterra, da Itália, de toda a Europa não disparam a sua artilharia verbal contra escritores e jornalistas que pelo velho continente afora têm publicado reportagens, editoriais, crónicas, entrevistas em que, fazendo a apologia da guerra, justificando os bombardeamentos da NATO, acumularam montanhas de inverdades e de calúnias.
Os mecanismos da pressão social e do medo são tão fortes que o próprio Debray, ao apresentar a sua defesa em artigo publicado na edição de Junho de «Le Monde Diplomatique», adoptou uma táctica que acabou por não o favorecer. Ao proceder a um inventário sintético da desinformação, da desonestidade profissional, da falta de ética que caracterizou nos grandes media o tratamento da guerra de agressão contra a Jugoslávia, Debray trocou o estilo directo, quase contundente, da Carta a Chirac, por um discurso em que os factos se diluem numa reflexão de matizes filosóficos de acessibilidade difícil ao leitor comum.
Ignacio Ramonet, cuja obra representa uma contribuição importantíssima para uma compreensão aprofundada do funcionamento das engrenagens mediáticas na moderna sociedade informacional, publicou na mesma edição do jornal que dirige um editorial contraditório e ambíguo que confunde mais do que esclarece, a principiar pelo uso da palavra «democracia», sempre generalizante, impreciso. Dele se pode dizer que dá uma no cravo e outra na ferradura. Escrevendo sobre «A Nova Ordem Global» a propósito da guerra, que não define claramente como agressão à Jugoslávia, sai com frequência do tema para se embrenhar por desvios. Os estereótipos sobre o binómio Milosevic-Kosovo estão presentes, mas a condenação directa do imperialismo, a solidariedade com o povo sérvio essas estão ausentes. Ramonet fala um pouco de tudo para passar sobre o essencial como gato sobre brasas. A sua atitude faz lembrar críticas que ele próprio dirige a jornalistas no seu último livro, «A Tirania da Comunicação».

Reflexões lúcidas

Paradoxalmente é dos EUA que chegam os textos de reflexão mais lúcidos sobre a criminosa agressão contra a Jugoslávia. Encontramo-los em revistas de ideias como a «Monthly Review» e noutras publicações de esquerda. Até na Internet. Noam Chomsky, — uma das figuras exponenciais da cultura norte-americana — foi um dos que usaram a rede para desmascarar a ambição e o farisaísmo da estratégia balcânica dos EUA e a manipulação mediática que tanto contribuiu para desinformar a humanidade, mascarando de cruzada humanitária em defesa de princípios eternos uma agressão contra um pequeno país concebida e executada com um amoralismo que só encontra precedente na política externa do III Reich nazi.
Chomsky lembra que na Turquia e na Colômbia morreu nos últimos anos mais gente do que nos conflitos interétnicos do Kosovo considerando-se apenas as acções repressivas desencadeadas pelos exércitos daqueles países e por organizações para-militares, respectivamente contra os curdos e contra as guerrilhas. Qual tem sido a atitude da Administração Clinton perante essas chacinas? Porventura foram os governos de Ancara e Bogotá acusados de genocídio e violação de direitos humanos? Não. Chomsky recorda que Washington, pelo contrário, mantém excelentes relações com as forças armadas daqueles países. No tocante à Turquia, esta recebe mesmo o tratamento de aliado preferencial.
A maioria dos intelectuais europeus que, de repente, fez da solidariedade com os albaneses do Kosovo um problema de consciência e justifica em nome da defesa da civilização (argumento de Lionel Jospin) a intervenção da NATO, mal sabia há dois anos da existência dos kosovares, e de Milosevic nem o nome conhecia.
Há pelo menos vinte anos que o exército indonésio desenvolve actividades de genocídio no Norte de Samatra e em Irian Jaya (Nova Guiné Ocidental). Mesmo em Portugal sabemos dos crimes praticados em Timor Leste, mas ignoramos quase tudo a respeito da repressão nas províncias indonésias. Ora somente no Achém dezenas de milhares de pessoas foram abatidas como gado pela tropa de Suharto ao longo das ultimas décadas. A consciência dos intelectuais europeus que apoiaram a guerra contra a Jugoslávia não funcionou nesse caso.
Os monstruosos crimes do angolano Savimbi – autêntico inimigo da humanidade — e o seu desafio às Nações Unidas também não suscitam emoção comparável à nascida do sofrimento dos albano-kosovares.
Quando o Ruanda foi transformado num açougue humano e quase mais de um milhão de pessoas foram ali chacinadas em massacres que não teriam sido possíveis sem a cumplicidade das grandes potências (nomeadamente a França) o tema não despertou entre os intelectuais europeus o interesse que os conflitos étnicos no Kosovo provocam. Porquê?

Estranhas hierarquias

É não só natural como indispensável que os intelectuais, em qualquer país, se mantenham vigilantes na defesa das liberdades, de princípios, do respeito por direitos fundamentais. A opressão exercida sobre um povo, seja ele qual for, é sempre intolerável. O que não faz sentido é hierarquizar a solidariedade em função das pressões da máquina de propaganda da sociedade informacional e, de concessão em concessão, assumir atitudes pavlovianas, ou seja aquelas que, afinal, correspondem aos interesses dos autênticos criminosos, no caso o sistema de poder dos EUA.
Não foi sem repugnância que tomei conhecimento da decisão do governo norte-americano de pôr a prémio a cabeça de Milosevic. A Administração Clinton agora oferece cinco milhões de dólares por informações que possam levar à captura do presidente da Jugoslávia, como suposto criminoso de guerra.
Parece coisa de um filme do Far West. A perversão mediática tem, entretanto, feito tais estragos na consciência social europeia que a reacção a essa abjecta iniciativa foi morna, quase inexistente.
Caberia recordar que nunca os EUA ofereceram dinheiro pela cabeça de ditadores sanguinários como o haitiano Duvalier, o dominicano Trujillo, o nicaraguense Tacho Somoza, o chileno Pinochet, o paraguaio Stroessner e tantos outros. Todos, pelo contrário, foram acarinhados como grandes amigos de Washington.
Estranho mundo unipolar o do fim do milénio que erige em heróis os vilões, políticos que, pelas suas funções e actos, emergem, esses sim, como inimigos da humanidade responsáveis por incontáveis crimes.
Se neste apagar das luzes do século alguém justifica o anátema de criminoso de guerra numero um é o presidente dos EUA, William Clinton.
É de lamentar que a intelligentsia europeia não se tenha ainda apercebido dessa evidência.


«Avante!» Nº 1336 - 8.Julho.1999