Um contentamento descontente


Na noite de Sábado bateram-me à porta. Era um velho amigo, Luís Vaz: "Venho desabafar contigo".
Estava muito irritado: seguira pela TV a Convenção do PS.
- E até pareciam muito contentes...
- Olha que aquele contentamento soa muito a falso. O que viste foi nova exibição de promessas, uma manobra para captar clientelas, uma missa cantada d4e propostas avulsas, um catálogo louvaminheiro do que não foi feito, uma convocação da corte para beija-mão eleitoral. Uma reposição, noutro palco e com outra encenação, do gasto discurso de há dias atrás sobre "o estado da Nação". Uma cobertura florida para tentar reavivar promessas desbotadas e requentadas, transitadas das eleições de há quatro anos. Promessas que continuam em dívida. Este governo sai endividado até ás orelhas. Mas tem as orelhas tapadas ao descontentamento do país.
- É então um, contentamento descontente, como diz o meu soneto?
- Não viste as fardas nas ruas, na semana passada? E as reclamações dos agricultores, dos pescadores, da função pública, da saúde, dos magistrados, dos estudantes...
- Sim. E aí há muito "fogo que arde sem se ver".

Luís Vaz sentou-se com a mão a segurar a testa:
- Aquele verso que diz "é fogo que arde sem se ver" não se refere somente ao amor, mas à aspiração de uma humanidade que vai abrindo a fogo futuros caminhos. E para caminhar é preciso ter força para trilhar caminho, sempre a imaginar o próximo passo, assaltando o próprio caminho até encontrar a próxima vereda. Eu quis perpassar liberdade em verso. E agora iremos cair de novo em "uma apagada e vil tristeza"?
- Compreendo a tua indignação. Estão a perder-se oportunidades e possibilidades, a agravar-se problemas, a desenhar-se perigos. Viste a insolência com que o sr. Ferraz da Costa, porta-voz dos grandes patrões, reclamou frente ao Presidente da República "um governo de ‘bons gestores’ bem remunerados" (e da confiança dos "gestores". claro está...) para acabar com a "má qualidade dos políticos" e a "dependência dos partidos"? Uma reposição dos governos salazaristas, em suma. Já não se satisfazem com os favores cúmplices dos submissos governos com que têm negociado e à conta dos quais os champalimauds se têm governado.
Irritou-se ainda mais:
- A falta de mudança é que me está exasperar. Para ser mais exacto: a falha na mudança. A diferença entre o que diz e o que faz este poder insábio e voraz não é digna dos tempos que vivemos, e dos que hão-de vir.
– Não esqueças a tua dialéctica, Luís Vaz: tu mesmo disseste que "todo o mundo é composto de mudança"...
– Tens razão. Vou ter de acrescentar mais alguns Cantos a "Os Lusíadas". Não vamos deixar agora apequenar os lusos, aquela brava gente que descobriu caminhos desconhecidos, inventou instrumentos para interrogar céus e estrelas em alto mar, atravessou povos de terras distantes com a imensa curiosidade de os abordar. Eles dobraram até o Cabo das Tormentas!
- Com a razão que o futuro lhes deu, depois lhe chamaram Cabo da Boa Esperança.
– Creio que esse cabo, agora, só pode ser dobrado de novo com a vossa intervenção. E desculpa o pleonasmo: uma intervenção cada vez mais interveniente.

- Falas como se estivesses do nosso lado, Luís Vaz de Camões.
- Repara: muito antes de haver Partido, já eu era simpatizante.


«Avante!» Nº 1336 - 8.Julho.1999