Vida de criança

Cristina Ruiz-Cortina Sierra *


Em Novembro último, numa pequena notícia de um jornal de tiragem nacional, afirmava-se que . A dramática situação que se vive naquele país desde 1990 era resumida, assim, em breves linhas, num canto de jornal. Excepto nos casos em que se reconhecem os sucessivos bombardeamentos sobre as cidades iraquianas, nada aparece na imprensa sobre a situação humanitária da população deste país.
Desde 1990 até hoje, as sanções aprovadas pela ONU contra o Iraque causaram mais de um milhão e meio de mortos, incluindo cerca de 900.000 crianças menores de cinco anos. A população do país vê-se deste modo condenada injustamente pelas resoluções da ONU a um genocídio planificado e politicamente correcto.
O Iraque, o segundo produtor de petróleo em finais dos anos 80 e com a segunda mais importante reserva conhecida de petróleo do mundo, sofre um embargo total que obriga toda a comunidade internacional, afectando a sua exportação de petróleo. Sendo absolutamente dependente do exterior de todo o tipo de matérias-primas e produtos de primeira necessidade, o Iraque não só está privado de divisas paras as importar, como tem proibida a entrada no país de muitos produtos de primeira necessidade que facilitam, quando não garantem mesmo, a vida quotidiana.
O Iraque não pode importar lápis escolares (por causa do grafite), nem papel (porque o Governo poderia utilizá-lo na sua propaganda), nem cloro para tornar a água potável, nem sementes, nem fertilizantes.
Os mais pequenos não têm forma de escapar: uma em cada três crianças nasce já com menos peso do que o normal, se é que conseguiu nascer normal e sem as deformações produzidas pelas bombas americanas de urânio radioactivo e outros produtos químicos. A falta absoluta de medicamentos, de leite materno, a escassez de água potável, a deterioração das condições ambientais, etc., fazem com que, como se disse, morram mais de cinco mil crianças por mês entre os zero e os cinco anos de idade em consequência de doenças que antes do embargo estavam totalmente erradicadas ou devido a doenças que se curam sem problemas nos nossos hospitais, como a gripe. Evidentemente, se for diabético ou tiver alguma doença que necessite de tratamento, não terá possibilidade de o receber porque não existem medicamentos.
Se uma criança conseguir superar estas terríveis condicionantes nos seus primeiros anos de vida, poderá talvez ir à escola, se houver uma próxima do seu bairro. Na escola não encontrará giz nem lápis, e só muito pouco papel ou cartolinas para fazer trabalhos manuais. Talvez tenha de se sentar no chão, porque quase 50 por cento dos estudantes iraquianos não dispõem de carteiras. Terá muito poucos livros e os que houver já terão sido usados por várias gerações de crianças. Às vezes não haverá luz eléctrica na escola, e escusa de pensar na possibilidade de ter aquecimento. Os estudantes de Bagdad ou de Basora ou de outras cidades desmaiam muitas vezes durante o período escolar por subnutrição. Actualmente, muitos interrompem cada vez mais cedo os seus estudos para irem ajudar economicamente as famílias. Há muitas crianças pelas ruas de Bagdad vendendo flores ou fruta ou lágrimas.
Se continuasse os seus estudos e fosse para a Universidade, este ano descobrira que bombardearam muitas dependências universitárias, entre elas a Biblioteca Geral, pelo que continuará a ter muitos problemas para completar com êxito os seus estudos. Qualquer investigação que, como qualquer universitário do mundo, quisesse iniciar, passaria por um rosário interminável de obstáculos porque o embargo não permitirá nunca que um estudante ou investigador iraquiano assista a um congresso internacional ou receba publicações científicas ou médicas do estrangeiro.
Sem dúvida os estudantes aprenderão rapidamente que nasceram num país condenado e que são candidatos para o genocídio. Saberão que talvez o erro geográfico e geológico deste país foi o de contar com a segunda reserva de petróleo do mundo e que estrategicamente o mundo , e não lhes vai permitir que o administrem como entenderem. Também aprenderão depressa a saber quem são os seus amigos e onde estão, mas conhecerão melhor o inimigo que descarrega as bombas sobre as pontes que têm de atravessar para ir para a escola, sobre os hospitais, sobre as suas próprias escolas, sobre a sua casa ou sobre o abrigo onde se refugiam com a família. O seu inimigo, com cabelo e olhos claros, é bem conhecido. Mas também o são aqueles que, sendo irmãos, como eles, próximos, vizinhos, olham para outro lado e estendem a mão para receber os dólares do petróleo.
Será mais difícil que ao olharem para o mapa-mundo vejam que nesta pequena península que habitamos há também muitos inimigos, porque talvez ainda não conheçam, não tenham ouvido falar, das bases de Rota e de Morón, de onde partem exércitos e aviões carregados de morte para o Oriente Fértil. E com certeza a maioria não ouviu falar de um sujeito baixinho e com bigode [José Maria Aznar] que assina todos os papéis necessários para que, a partir do seu território, se possa organizar a morte com cada vez mais tranquilidade e comodidade.
Esse sujeito conta com essa segurança de ser, hoje, um inimigo menor e indefinido. Mas outros/as estão a desmascará-lo e a denunciá-lo. O Governo do PP é cúmplice deste genocídio planificado que permite que morram e sofram milhares de crianças iraquianas. Hoje são 900.000. Estarão à espera que chegue ao milhão?

*(Membro da delegação espanhola que visitou o Iraque em Janeiro de 1999, in Mundo Obrero, Abril de 1999)


«Avante!» Nº 1336 - 8.Julho.1999