A ponta do iceberg
Embora, estranhamente, nenhum genérico inicial antecedesse o documentário, nem sequer a este se seguisse a habitual ficha técnica ambos suprimidos no ar e pelos vistos substituídos pelo genérico de abertura e fecho de «Sinais do Tempo», o espaço televisivo no qual foi transmitido nem por isso o conteúdo do filme em questão foi menos verosimilhante ou plausível, já que se percebeu, a meio do mesmo, ter sido produzido pelo «Channel 4», uma prestigiada empresa de televisão britânica.
Chamava-se o documentário, muito
prosaicamente, «Mentiras na TV», tradução
aparentemente fraca para um título que se imagina fosse
porventura bem mais sugestivo no original. Mas pode ser que me
engane.
O que mais me interessa, acima de tudo, é que o princípio
«dramatúrgico» que presidia à organização interna do filme
- se é que, em documentarismo televisivo ou cinematográfico,
esta terminologia emanada do mundo da ficção pode ser
legitimamente utilizada, dúvida bem adequada à própria génese
do problema nele abordado era sobremaneira original.
Tratava-se, no fundo, de fazer a reconstituição dentro da
reconstituição, ou seja: filmar os meandros reconstituídos
da falsificação da realidade, através da demonstração
filmada de uma série de casos protagonizados por um produtor
de televisão alemão, de seu nome Michael Born, acusado
de várias fraudes em relação a diversas empresas de
televisão, pela venda de reportagens falsas.
Vamos aos pormenores. Desde 16 de Dezembro de 1996 que correu no
Tribunal de Koblenz, na Alemanha, um processo contra aquele
produtor de TV, acusado de coisas simpáticas como:
participação em torturas de animais, violação da lei da
compra e posse de armas de fogo, agitação de populações, uso
e divulgação (indevidos e proibidos) de insígnias nazis,
incitação à xenofobia, difamação e injúrias contra os
judeus, negação da tragédia do Holocausto e justificação dos
crimes do Nacional-Socialismo. Enfim, como se vê, «coisa
pouca» para ser atribuída a um único homem e que,
naturalmente, mereceria cuidadosa investigação jornalística.
Foi o que o Channel 4 resolveu fazer, decidindo nada mais
nada menos do que ir à procura da própria fonte desta
«história» - neste caso o seu protagonista principal
procurando averiguar da verdade sobre estas actividades ilícitas
e altamente lesivas da ética jornalística.
E os resultados a que chegou foram verdadeiramente terríveis e
preocupantes e deles tivemos profuso relato na passada 4ª. feira
na RTP 2. Não só Michael Born, durante o curso
desta investigação jornalística, apenas muito ao de leve
esboçou um arremedo de justificação para os seus conceitos de
«profissionalismo informativo», como no fundo foi traído pela
verdadeira baixeza moral que, em muitos momentos do
documentário, acabou por deixar trair.
Ou seja, revelando um carácter verdadeiramente desprezível,
aquele produtor de TV não só teve a lata de explicar, com larga
cópia de pormenores, a forma como inventava e encenava
reportagens sobre histórias sensacionalistas, como permitiu que
a equipa do Channell 4 na prática utilizando à
sua frente e em relação a ele próprio, embora com intenções
bem diversas, os mesmos dispositivos técnicos de que ele se
servia para falsificar a realidade (!) demonstrasse por
a+b as diferenças entre fazer documentarismo televisivo sério
ou falsificado.
Daqui ao estendal de revelações, feitas pelo próprio Michael
Born, sobre as formas de actuar em relação à caça de
assuntos vendáveis às cadeias de televisão, no sentido de
estas vencerem a sacrossanta «guerra das audiências», foi um
passo.
E assim se ficou a saber como falsificar uma reportagem sobre um
«correio da droga», filmado - como é normal vermos nas
reportagens do género - com a «câmara (alegadamente)
escondida» ou com o rosto esfumado por processos tecnológicos
de distorção da imagem. Ou como se reconstitui a cena de uns
fracos imitadores alemães da KKK, numa cerimónia de
celebração do ódio aos judeus. Ou como se inventa uma
reportagem sobre «caçadores de gatos». Ou como se encenam
planos médios ou aproximados da «maca com o corpo de Diana»,
após o mortal acidente de automóvel no túnel da Ponte de Alma,
em Paris. Ou como, nos EUA, em Hollywood, as várias cadeias de
TV privadas mantêm dezenas de helicópteros permanentemente no
ar à espera de ligações directas ao assalto de um banco, uma
perseguição de criminosos, um acidente em cadeia, uma
derrocada, um suicídio particularmente sangrento, etc., etc.,
etc. para logo os colocar no ar, assim servindo (no dizer
dos responsáveis entrevistados) os desejos dos espectadores!
O mais impressionante, entretanto, foi a forma como Michael
Born se dispôs a alinhar neste documentário (no fundo
confirmando todas as acusações que lhe foram imputadas), o ar
prazenteiro com que se pronunciava, às vezes rindo alarvemente,
sobre a justificação do seu «trabalho» e até o entusiasmo
que revelou quando conseguiu que um figurante contratado perante
os nossos próprios olhos (!) por 50 marcos à hora se revelou
afinal bem «mais credível» do que o actor que havia estado na
base dos documentários que lhe acarretaram a condenação de 4
anos!
Perante isto, num tempo em que igualmente entre nós impera a
informação-espectáculo, como não nos interrogarmos sobre a
habituação que os nossos próprios olhos também já são
incapazes de disfarçar perante tudo aquilo que a «caixinha
mágica» nos impinge quotidianamente? Manuel Jorge Veloso