Um país cheio de mãos


É curioso observar a insistência com que alguns comentadores políticos prosseguem a missão impossível de procurar apagar a má imagem projectada pela Convenção Nacional do PS. Aliás, é apenas e só essa insistência que justifica que aqui se volte ao tema. É óbvio que os comentadores em questão se sentem incomodados relembrando tudo aquilo – desde o hilariante vale de lágrimas com que a assistência regou a não menos hilariante representação do Primeiro Ministro, até à lamentável cerimónia do beija-mão, passando pela omnipresente obsessão doentia pela maioria absoluta. Mas a verdade é que tudo isto foi agravado com o facto de, desta vez e excepcionalmente, a generalidade da comunicação social escrita ter assinalado com objectividade a ocorrência. Assim, incomodamente isolados, os "cronistas da Corte" – em cuja destacada vanguarda sobressai Eduardo Prado Coelho – deixam transparecer um imenso mal estar, uma espécie de complexo de culpa, como que a necessidade de corrigir, agora, o fracasso que foi a sua tarefa de, então, valorizar e enaltecer a Convenção. Há, mesmo, sinais de iniludível desnorte nalgumas abordagens da matéria em questão.

Na enésima tentativa de demonstrar o indemonstrável, o acima destacado comentador vai ao ponto de considerar que «a maior parte dos analistas e comentadores» classificou a Convenção como «um não-acontecimento», mas que por tanto ter falado dela «a transformou num acontecimento». Se é certo que uma tal visão das coisas serve às mil maravilhas as conclusões a que o comentador queria chegar, mais certo é que a premissa de que parte é falsa... na medida em que, como disso se apercebeu qualquer leitor distraído, «a maior parte dos analistas e comentadores» tratou sempre a Convenção como um acontecimento mediático, lamentável, sem dúvida, mas acontecimento.
Mais longe vai, no entanto, o isolado comentador quando, na ânsia de mostrar trabalho feito no elogio à política de direita do Governo, traça um quadro da situação nacional caracterizado, nomeadamente, por um «nível de agitação social reduzidíssimo», facto que ilustraria as bondades da dita política e a satisfação social daí decorrente. Se é difícil detectar a fonte onde tal informação foi bebida, é facílimo localizar a mesa farta onde tal desinformação foi ingerida.

Admitamos, apesar de tudo, que esta família de comentadores acredita no que escreve, julga estar a descrever a verdade e concedamos-lhe o benefício de considerar que os seus textos sejam o resultado não de intenções deliberadas de escamotear e manipular a realidade mas, apenas e somente, de clamorosa ignorância – de um certo tipo de ignorância característico destes tempos encarcerados em várias novas ordens e onde a nova ordem informacional ocupa lugar de destaque. De facto, sendo tais comentadores, como tudo faz crer, consumidores de informação que se abastecem exclusiva e abundantemente nos hipermercados da comunicação social dominante, não só ficam no desconhecimento de parte substancial da realidade como absorvem toda a desinformação organizada que, sobre o país e o Mundo em que vivemos, lhes está destinada. Ora, é sabido que as questões laborais – os problemas e as lutas dos trabalhadores – não são tema para cuja abordagem a comunicação social dominante esteja vocacionada. Não faria sentido, aliás, que órgãos ditos de informação mas que são propriedade de grandes grupos económicos e financeiros, concedessem parte significativa do seu tempo e do seu espaço, a questões dessa natureza – a não ser, como acontece, para delas difundirem o que aos proprietários interessa que seja difundido. Assim, a melhor forma de proporcionar aos comentadores a «demonstração» do tal «nível de agitação social reduzidíssimo» é silenciar as lutas ou menorizá-las quando delas se fala. Essa prática possibilita-lhes, até, a produção caudalosa de teoria sobre a inutilidade e a não necessidade da luta. Esses comentadores ficariam, talvez, surpreendidos se, de repente, lhes caísse em cima das secretárias uma informação séria e rigorosa de todas as lutas sociais travadas no nosso país desde que o PS está no Governo e, inclusivé, nos últimos meses e semanas. E talvez ficassem atemorizado ao constatar que, afinal, a «reduzidíssima agitação social» se traduz num vastíssimo conjunto de fortes lutas de massas, assumindo as mais diversas formas, e abrangendo praticamente todos os sectores de actividade.

Se os ditos comentadores tivessem tempo e paciência para ler essa informação na íntegra, aperceber-se-iam ainda do quadro concreto em que essas lutas são organizadas e concretizadas: ficariam a saber que, ao contrário do que presumivelmente supõem, são enormes as dificuldades e obstáculos que, neste final de milénio, se colocam a todos os trabalhadores que persistem em lutar pelos seus interesses e direitos; constatariam, possivelmente surpreendidos, que nesta louvada democracia em que vivemos, todos os dias direitos fundamentais dos trabalhadores são violados na mais completa impunidade; aperceber-se-iam, talvez com espanto, do valor de um posto de trabalho e da insegurança e incerteza no futuro vivida por milhares e milhares de trabalhadores; descobririam, quem sabe se estupefactos, o verdadeiro significado da palavra precariedade – dessa monstruosidade que, como denuncia Pierre Bourdieu, torna «o trabalho numa coisa rara, desejável a qualquer preço, que põe os trabalhadores à mercê dos empregadores e estes, como podemos verificar todos os dias, usam e abusam do poder que assim lhes é dado»; que «age directamente sobre aqueles que toca (e que deixa sem condições de se mobilizarem) e indirectamente sobre todos os outros, pelo medo que suscita e que é metodicamente explorado pelas estratégias de precarização, com a introdução da famosa ‘flexibilidade’»; e que, por tudo isso, «se inscreve num modo de dominação de tipo novo, baseado na instituição de um estado generalizado e permanente de insegurança, visando coagir os trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração».

Aí chegados, talvez os comentadores, num assomo de verticalidade e honestidade intelectual, rejeitassem o cumprimento das suas tarefas de «intelectuais negativos», deitassem para o cesto dos papeis todo o seu (des)conhecimento nesta matéria e se decidissem a aprender a admirar a coragem e a dignidade dos muitos e muitos milhares de trabalhadores portugueses de todos os sectores de actividade que – apesar de todas estas violações das suas liberdades e direitos, apesar de todas as ameaças e chantagens, apesar de toda a repressão mais ou menos sofisticada, apesar do todos os comentadores encarregados de justificar e glorificar a política de direita e os seus resultados e de demonstrar que Portugal está em «boas mãos» - ousam continuar a lutar. Por saberem que é nas suas mãos que está o seu futuro e talvez sabendo por experiência própria que, como escreveu o O’Neill, «a história do país está cheia de mãos»...


«Avante!» Nº 1338 - 22.Julho.1999