Salazar e a moeda única

Por Agostinho Lopes



NO PASSADO DIA 1 DE JULHO fez 70 anos a entrada em vigor de um Orçamento Geral do Estado para 1929/30 do ministro das Finanças Oliveira Salazar. Um Orçamento com um excedente, com «saldo positivo»
(1). Um Orçamento que cumpria «avant la lettre», os critérios de convergência de Maastricht e do Pacto de Estabilidade (2).

A propósito da efeméride, o Diário de Notícias (DN), na sua edição desse dia, publicou, a par de extractos de uma entrevista de Salazar ao DN de então, pouco antes de entrar em execução o dito Orçamento, os comentários de quatro ex-ministros das Finanças em governos pós-25 de Abril. Um trabalho jornalístico interessante, que só pecou por os comentários terem ficado restritos a três ex-ministros do bloco central (embora apenas um, tenha sido ministro do governo do Bloco Central) e outro, ideologicamente próximo.
Mas não só ministros do bloco central, economistas todos eles mais ou menos adeptos do fundamentalismo do «equilíbrio orçamental» a todo o custo.
Os seus comentários são, aliás, bastante explícitos na defesa dessas teses ao avaliar a situação orçamental do Estado português nos dias de hoje, na valorização que fazem das regras do Pacto de Estabilidade, como a sua apreciação da excelência da gestão financeira de Salazar, pesem insignificantes divergências.
Vale a pena a sua leitura, cotejada com o que Salazar disse ao DN em 1929. E não cabendo aqui a sua transcrição, merecem ser feitas breves referências, que valem como conclusões (minhas) desses comentários.

«Salazar não tem, portanto, uma posição nacionalista nem estatista, é um ministro das Finanças moderno».
Braga de Macedo,
ministro das Finanças do XII Governo (PSD/Cavaco Silva)

«eu não gostaria de sugerir que os meus amigos do FMI são salazaristas, mas fazem as contas da forma como Salazar refere: vamos ver quanto recebemos para saber quanto podemos gastar».
Miguel Beleza,
ministro das Finanças do XI Governo (PSD/Cavaco Silva)

«se dermos números às medidas que são referidas no texto (entrevista de Salazar) – a estabilização da moeda, um critério de inflação, o critério do défice, o da dívida pública e as taxas de juro – acabamos por anunciar em termos teóricos, os critérios de Maastricht».
Ernâni Lopes,
ministro das Finanças do IX Governo (Bloco Central, PS/PSD)

Salazar tinha «toda a razão quando afirmava que a consolidação (orçamental) era absolutamente indispensável para o País ganhar condições de progresso económico».
Silva Lopes,
ministro das Finanças do III Governo (Nobre da Costa)
e do 2º e 3º Governos Provisórios


Conclusões que ficaram por tirar

Foi pena, mas compreensível, que os quatro ex-ministros não procurassem desenvolver os seus comentários sobre a «justa» política financeira de Salazar, e tirar conclusões. Isto é, que tivessem respondido à interrogação que muito leitor do DN terá feito: onde conduziu o País, essa política do «equilíbrio orçamental» e da «moeda forte»? Sabe-se hoje, como sabiam os portugueses durante a ditadura: ao País mais atrasado da Europa, a uma negra ditadura necessária para impor aquela «ditadura financeira» aos trabalhadores e ao povo português. Note-se que dos quatro ex-ministros, apenas Silva Lopes, mesmo que valorizando a «consolidação financeira» de Salazar, faz uma ressalva, «O atraso desastroso foi na educação».
Quantos portugueses tiveram a oportunidade de ver nas paredes da sala de aulas da sua Escola Primária, cartazes de propaganda do Estado Novo, «A lição de Salazar», recordar-se-ão de um em que uma máquina de fazer (muitas) notas da I República, se confrontava com as barras de ouro, sacas de libras, e um saco do Banco de Portugal de onde saía a moeda forte (metálica, reluzente, tilitante) de Salazar. E sentir-se-ão perplexos perante os elogios ao principal responsável pelo subdesenvolvimento económico, social e cultural do País.

Reflexões que ficaram por fazer

Não fizeram também os quatro ex-ministros as reflexões que se impunham sobre o significado dessa «consolidação orçamental» e «moeda forte» para os portugueses de então, além do elevadíssimo preço pago pelo futuro do País.
Os tecnocráticos comentários, e a visão parcial que eles comportam, não aproveitaram a deixa de Salazar na referida entrevista: «A estes resultados ("melhorias financeiras") correspondem, é claro, sacrifícios dos produtores, dos capitalistas, dos funcionários (...)». Isto dizia a melíflua voz, metendo no mesmo saco dos sacrificados, o capital que o apoiava, e os trabalhadores e restante povo português, numa manobra propagandística repetida vezes sem conta até aos nossos dias.
Os sacrifícios foram o crescimento brutal da carga fiscal (entre 1928 e 1931, as receitas do Estado subiram para o dobro), da taxa de exploração, do desemprego do povo trabalhador. Em 1928, depois de tomar conta da pasta das Finanças (27 de Abril), para iniciar o tal «milagre financeiro», Salazar avança com a Reforma Orçamental e a criação do imposto de «salvação pública» e a multiplicação das «taxas de salvação nacional» sobre o açúcar, a gasolina, óleos, etc..
À miséria que essa política provocava responderam os trabalhadores e o povo com inúmeras greves, manifestações e outras lutas por melhores salários, contra o desemprego, contra a ditadura fascista que então se implantava.
(3)
Entre 1927 e 1934 a imposição dessa política, onde um eixo central era a contenção, e mesmo redução, dos custos da força de trabalho, significou a ilegalização do movimento sindical e do PCP, a abolição dos partidos políticos e a extinção dos sindicatos, o reforço do aparelho repressivo, particularmente com a criação a PVDE, a instauração da censura prévia, a criação de organizações corporativas, a proibição da greve e a promulgação da Constituição do Estado Fascista.
A 23 de Setembro de 1933 era promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, inspirado na «Carta del Lavoro» de Mussolini, sob o lema «Só o bom entendimento entre operários e patrões conduz ao equilíbrio social». (Porque será que nenhum dos ex-ministros das Finanças referenciou a antecipação de Salazar em matéria de concertação social?!)

«O grande desígnio nacional»

Parafraseando muito livremente um conhecido verso camoniano «uma moeda forte não faz forte uma fraca economia». É essa a grande lição histórica e económica da ditadura financeira de Salazar. E sem empolar o papel da moeda (ultrapassando a sua natureza marcadamente instrumental) a experiência histórica de outros povos parece até demonstrar exactamente o contrário: é que construíram economias fortes com moedas fracas e algum desregramento orçamental. (2)
E é este ainda o grande problema da moeda única, do Euro, com que o País se encontra confrontado, que o primeiro-ministro António Guterres acabou recentemente de considerar ter sido «o grande desígnio nacional da legislatura». (Fazer de Portugal um dos fundadores do Euro).
(4)
Euro e Pacto de Estabilidade (ou seja, a transfiguração de tal princípio de equilíbrio financeiro de Salazar em imutável e absoluta política dos países aderentes ao Euro), que o conhecido estudo da Universidade Nova, encomendado pelo Ministério das Finanças, sobre os impactos da Moeda Única assinala deixar ao Estado português, o emprego e os salários dos portugueses, isto é, os custos da força de trabalho, como únicas variáveis de ajustamento da economia portuguesa.
Euro e Pacto de Estabilidade, sobre os quais o conhecido PNDES (Plano Nacional de Desenvolvimento Económico e Social), apresentado pelo primeiro-ministro, no seu capítulo «Desafios da Participação de Portugal na Moeda Única», tira preocupantes conclusões:
- «Um factor de vulnerabilidade adicional para as economias nacionais»
- Riscos que «a taxa de câmbio do Euro se fixe a um nível demasiado alto "penalizando" países com o perfil exportador de Portugal»
- Uma «política monetária (...) definida em função da conjuntura da União em geral, não atendendo à situação específica de um país com a dimensão de Portugal»
- «Na ausência dos instrumentos monetário e cambial (...) não estão disponíveis mecanismos financeiros de reequilíbrio conjuntural, no contexto da UEM»

(Mas só descobriram isto agora?)

Ontem como hoje, o carácter instrumental da moeda e do orçamento aconselharia a que a «força» da moeda e o «equilíbrio» do orçamento não fossem transformados em princípio e regra de governo, à margem da estrutura e necessidades da economia real, à margem das necessidades e objectivos da sociedade que essa economia suporta e integra.


Uma política de classe

Há meses, num interessante artigo «O óptimo ao alcance de todos», João Ferreira do Amaral conclui desta maneira: «Leitor, quando um economista lhe falar de uma situação óptima, desconfie. Pergunte logo: Mas óptimo para quem?». (5)
É esta a pergunta a fazer sobre a consolidação orçamental de Salazar e sobre o desígnio nacional do Eng. António Guterres. Óptimo, mas para quem?
Na entrevista com 70 anos de idade que referimos, Salazar descrevia com muita clareza os objectivos de saneamento financeiro que ele identifica, naturalmente, com os interesses, como então se dizia, da «Nação».
Dizia então o ditador, constatando a fuga dos «capitais nacionais» perante a desordem do País (a desordem da I República: «desordem política, desordem administrativa, desordem financeira, desordem monetária e até jurídica»)
(6): «estabilizemos a nossa moeda e demos, logo que pudermos, a esses capitais, com a segurança do seu valor, a liberdade de movimentos e far-se-ão coisas de maior vulto para a economia nacional, do que seria possível só pelas forças do Estado, naturalmente limitadas».
Salazar, diz Braga de Macedo, mostrou-se «um economista, pensador e estadista moderno, internacional e amigo da iniciativa privada».
Salazar, diz Ernâni Lopes, insiste na estabilização da moeda para (e cita a entrevista de Salazar) «dar a esses capitais com a segurança do seu valor a liberdade de movimentos», «que o Estado não embarace a formação de riquezas».
Só não disseram que Salazar não aderiu ao Euro porque ele não existia!
Mas está tudo dito: são «os interesses privados», «os capitais», a quem se deve dar «com a segurança do seu valor a liberdade de movimentos» e a «liberdade de formação de riquezas», que estão por detrás desse objectivo tão simples como a «moeda forte» e o «equilíbrio orçamental»! Que é como quem diz, os interesses do todo poderoso capital financeiro e da sua rentabilidade.
Seria desnecessário dizer que outra opção política, outras escolhas de classe, não são obrigatoriamente sinónimo de uma desregrada e desequilibrada gestão das contas públicas e do Orçamento do Estado, se não fosse essa a identificação que os adeptos da «moeda forte» (moeda única) farão com a alternativa daqueles que a ela se oponham.

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Notas:

(1) Os serviços estatísticos da Sociedade das Nações levantaram, então, dúvidas sobre a fiabilidade de tais saldos positivos.
(2) Sérgio Ribeiro abordou esta questão no seu livro «Não à Moeda Única», no subtítulo A 8, «Economia fraca, moeda forte».
(3) Para uma informação mais completa do contexto em que se implantou a política da moeda forte e da estabilidade financeira, ver, por exemplo «60 anos de luta, ao serviço do povo e da pátria», 1921/1981, edições Avante, 1981
(4) In Proclamação à Convenção do PS, do Eng. António Guterres
(5) Independente, 19 de Março de 1999
(6) Sabe-se bem aonde conduziu esta fobia do ditador pela desordem: à ordem dos cemitérios e das prisões!


«Avante!» Nº 1338 - 22.Julho.1999