Por convicção

Por Sérgio Ribeiro


Ainda no rescaldo das eleições para o Parlamento Europeu, "ganhámos" um indesejado e indesejável e protagonismo pessoal que se tem traduzido em manifestações de solidariedade. Sobretudo de fora do Partido.
Na sequência do ambiente de credibilidade provocado pelo trabalho realizado pelos deputados comunistas, ter-se-á descoberto que um a menos irá fazer falta na representação portuguesa. E coube-nos aguentar o impacto dessa curiosa solidariedade tipo "sopas depois do almoço".

No entanto, há aspectos nessas manifestações que não podem ser menosprezados. Entre estes estão alguns que traduzem incompreensão pelos critérios adoptados pelo Partido e sua aplicação estratégica, e nem sempre tem sido fácil dar-lhes resposta. Até porque não se podem arrumar todas as posições que exprimem essa incompreensão no arquivo das manifestações anti-Partido. Muitas delas têm reconhecida boa fé embora possam estar imbuídas do pressuposto de que o aparelho partidário é injusto por frieza ou indiferença quanto a méritos pessoais.
Não tem faltado quem pergunte como podemos aceitá-lo. Se é por devoção ou por obrigação. Começando por não aceitar nem o pressuposto nem avaliações de méritos relativos no que é trabalho colectivo, temos respondido que estamos neste Partido por convicção.
Poderá perguntar-se porquê trazer para o Avante o que é, em tantos casos, conversa com o exterior do Partido? Pois porque nos parece que as reflexões que estes temas suscitam são muito importantes para o Partido que somos no momento que atravessamos.
Assim como não devemos arquivar, expeditamente, tudo o que nos ataca ou desagrada como Partido, também na imagem que de nós tem quem não é nosso inimigo, mas que é nosso potencial - e tantas vezes concretizado - amigo, simpatizante, até militante, devemos procurar o que são razões. E procurar nelas alimento para autocrítica.
Aliás, algumas dessas conversas chegam, por vezes, a verdadeiros impasses porque há coisas que só entre nós é que devem ser discutidas. Porque damos razão ao que fundamenta essa incompreensão e para a trazermos para a discussão interna?, porque aceitamos que, de fora para dentro, nos venham influenciar, assim sendo permeáveis a que, do exterior, nos digam o que devemos ser como colectivo?
De maneira nenhuma. Diria mesmo pelo contrário!


Um colectivo dentro de colectivos

Somos um colectivo, um grande colectivo, com um património de luta inigualável. Mas somos um grande colectivo dentro de outros colectivos mais largos. De colectivos que são o povo português e os trabalhadores de todo o mundo.
Por isso, somos também - e muito - a imagem que de nós dão a esses outros colectivos, e uma batalha que temos de travar é a do combate à desvirtuação da nossa imagem, como intencionalmente o faz o nosso inimigo (de classe) e outros por desinformação ou por estarem (des)informados por esse inimigo (de classe). A propósito, lembramos sempre Lenine que dizia que fazem de nós uma caricatura e, depois, nos atacam pela caricatura que de nós fizeram.
Que nos atacam porquê e junto de quem?
Porque o nosso inimigo (de classe) não dá tréguas e não olha a meios na luta (de classes) que nos move; junto de quem é preciso que a imagem que de nós tenham os afaste de nós, quando nossos são ou teriam todas as razões para o ser.
Se é verdade – e não nos cansaremos de o repetir – que as eleições não são nem o único nem o mais importante terreno da nossa luta, elas têm de servir, também, para nos dizer que imagem têm de nós os colectivos de que fazemos parte, e como estamos a ser capazes – ou não – de lhes comunicar como somos, o que queremos e como queremos (com eles) lá chegar.
Façamos um pequeno exercício que, embora aproximado à realidade conhecida das "eleições europeias", é apenas um exercício. Numa amostra de 1000 eleitores portugueses, 100 votaram CDU. Destes, 30 são os que podemos dizer ser os nossos/nossos, os militantes de cartão e tarefas, embora nesses 30 não estejam todos (num total de 33 nossos/nossos, talvez 3 - e somos optimistas...- não tenham cumprido a tarefa de votar CDU). Logo, houve 70 quase-nossos, ou sensíveis ao nosso esclarecimento e mobilização, que connosco votaram.
Mas quantos – com os nossos 3 "distraídos...- não o fizeram por terem sido sensíveis à imagem que, em permanente desinformação, lhes é dada de nós?, quantos, por isso, se teriam abstido de votar CDU, ou votaram noutras listas, não obstante já em nós terem votado noutras ocasiões e serem nossos potenciais (e naturais!...) votantes, companheiros, camaradas da luta que também é a sua? E as suas observações e reflexões vão ser-nos indiferentes para o modo de continuar esta luta? Claro que não o podem ser.
Quer isto dizer que devemos mudar o conteúdo do discurso, o que lhes comunicar? Não!, bem pelo contrário.


Mudar o quê?

O que há que mudar é a maneira de comunicar o mesmo, e não comunicar outras coisas mantendo o discurso e a maneira; o que há que mudar é o modo de nos relacionarmos com os outros (entre nós e com outros que nossos não são) coerentemente com o respeito que nos merecemos e que eles nos merecem, recusando imitar ou aceitar regras de um jogo que não é o nosso e que é muito eficaz... para o inimigo (de classe).
Entendemos ser nossa tarefa fazer da actividade política uma prática da pedagogia do respeito pelos outros, sem concessões. Sem as concessões que, começando por nos desrespeitar, são, também, ausência de respeito pelos outros. Dizer-lhes o que somos, o que fazemos e porque o fazemos.
Não faltam exemplos lá de fora (também os há por cá....) de tentativas de chegar aos outros começando-se por esconder o que somos, fazendo concessões no que não pode mudar para que não deixemos de ser o que somos. Com o pretexto ou o argumento das necessidades tácticas.
Conhecem-se os resultados e alguns estão aí à porta. São experiências e processos em que tudo se perdeu. Se é certo que só temporariamente se perdeu o que será recuperado, é certo também que, nessas experiências e processos, se perderam o discurso ideológico, a prática consequente, os símbolos, o nome, e também os outros a que se pretendia chegar, tudo e todos absorvidos na negação do que deveria ser afirmado.
Mas não se trata de afirmar o que somos por mero diletantismo ou provocação, repetindo frases e discurso. Há que mudar o que não se adapte à actualidade, o que seja de outros tempos e a eles cheire, o que as caricaturas de nós feitas - a que factos e processos históricos teriam emprestado credibilidade - ridicularizaram ou tornaram risíveis. Os "amanhãs que cantam", os estereótipos ultrapassados do proletariado e da burguesia podem servir de (talvez maus) exemplos.
Trata-se, isso sim, de não escamotear, antes tornar bem explícitas, referências que são nossas e insubstituíveis. Como a de exploração da força de trabalho (e pensamos no colectivo dos trabalhadores de que somos parte intrínseca), a de injustiça social (e pensamos no colectivo do povo a que pertencemos), a de classes sociais, a de luta de classes, a de socialismo. Se se abdica destas referências, no discurso e na prática, começa-se a deixar de ser comunista pela não afirmação do que nos identifica e nos deverá aproximar dos outros. Respeitando-nos, e respeitando-os, ao mostrar o nosso rosto e tirando espaço e sentido à(s) caricatura(s) que de nós fazem.
Não será esta, ou dificilmente o será, a postura de quem esteja no Partido por devoção ou por obrigação (moral ou ética seja ela). Mas só pode ser esta a postura de quem está no Partido por convicção. Por convicção que nasce e se forja numa concepção de vida e de mundo, que se materializa num colectivo e numa luta que nos antecedeu e nos sobreviverá. Convicção tornada pele, carne, ossos, razão. De ser.


«Avante!» Nº 1338 - 22.Julho.1999