Património cultural
Equívocos da «gestão integrada»

Por Vítor Serrão


As recentes polémicas vindas a lume na imprensa nacional em torno do conceito de «Gestão Integrada de Bens Culturais», designadamente no âmbito das competências sobre Monumentos e Edifícios Classificados, põem a nu os equívocos e descréditos que reinam, a nível da governação, no campo da política da Cultura.

A situação é grave, pois revela – mais do que quezílias entre grupos de pressão na sua luta por espaços de influência – a desresponsabilização crescente do Estado democrático face às suas responsabilidades no sector. Assim, discutirem-se questões de controlo dirigista (entre o IPPAR e a DGEMN, por exemplo), quando mais interessaria reforçar-se a confiança no seio do aparelho do Estado e definirem-se grandes opções interventivas; discutirem-se questões de tutelismo vertical, quando os centros históricos se degradam, ou quando o histórico Chalêt da Condessa, no Parque da Pena, em Sintra, é destruído perante a passividade das instâncias responsáveis; discutirem-se questões de princípio na área patrimonial sob bases meramente corporativistas, quando a situação no terreno se agrava sem remissão; discutirem-se as pertinências (teóricas) de uma Gestão Integrada, quando ela só pode ser instaurada com bases legislativas e consensuais que ainda falecem; tudo isto dá muito que pensar, pelo que traduz de inoperância e de fragilização do Estado na sua expressão interventiva.
O PCP sempre assumiu, à luz dos princípios do marxismo, a defesa de uma política de Cultura organizada segundo grandes princípios estruturais e que vise contribuir, através da crescente democratização da sua tutela, para desenvolver formas de existência mais vivas, justas e solidárias. O reconhecimento das aptidões e aspirações do povo português impõe que o estímulo à criação, a liberdade de tendências, a fruição de bens e equipamentos culturais, a salvaguarda do Património histórico-artístico e memorial, e a regulação do mercado que envolve a produção e circulação, sejam imperativos de política nacional do seu mais amplo sentido. Justamente porque o Património é das grandes prioridades do Estado democrático, mais imperioso se torna, a nosso ver, a defesa do princípio da Gestão Integrada, a fim de reforçar o papel do Estado e dos seus organismos (dentro e fora do M. C.) numa intervenção mais sólida e duradoira.


Doze medidas

A Gestão Integrada – que foi um dos valores defendidos pelo actual M. C., no primeiro ano de mandato (1995), mas gradualmente abandonado na prática – é um conceito operativo que, a nosso ver, importa implementar de forma faseada, através de doze medidas concretas:

1 – em primeiro lugar, impõe-se restaurar a confiança entre ministérios, institutos, agentes culturais e demais tutelas do Estado, através do reforço dialogal, com garantias de qualidade interventiva e condições de trabalho que assegurem a sua actividade corrente;
2 – depois, impõe-se entender de uma vez por todas a salvaguarda do património histórico-artístico, arqueológico e ambiental, no seu conjunto, não como prática fachadista, mas como promotora da sua efectiva dimensão social tranformadora, enquanto instrumento potenciador da identidade nacional;
3 – em terceiro lugar, urge que o M. C., entendido como organismo interactivo, saiba combater de forma organizada, e sem exclusões, a especulação e destruição generalizada de bens móveis (artíticos, arqueológicos, etc.). regulando-se o património no quadro do ordenamento do território, e privilegiando a formação de quadros técnicos na área da conservação e restauro;
4 – em quarto lugar, que o Estado fomente o desenvolvimento cultural das populações e que descentralize efectivamente o acesso aos bens e equipamentos culturais, promovendo a articulação flexível entre estruturas de poder (central e local) e instâncias de produção, criação e fruição, desde artistas, associações, fundações, academias, escolas e empresas;
5 – que, ao mesmo tempo, saiba potenciar, com novos recursos, os efeitos culturais da educação e do ensino, da ciência, do restauro, da conservação preventiva, da investigação e da comunicação social;
6 – em sexto lugar, que o princípio da gestão integrada de monumentos, edifícios e bens possa ser experimentado, primeiro, e consolidado, depois, no seio do M. C., não através de decretos impostos a outras tutelas ministeriais (Equipamento, Planeamento e Administração do Território, Finanças, Ambiente, Defesa, Agricultura), antes através de um reforço da confiança entre as instituições envolvidas, de modo a controlar recursos humanos e financeiros, definir prioridades cíclicas e potencializar intervenções;
7 – depois, que essa confiança assente no prometido (mas sempre adiado) Pacto Patrimonial entre o Estado e as entidades que detêm bens (Igreja Católica, instituições privadas, Misericórdias, academias, associações e empresas) e com os técnicos de conservação e restauro, assim se congregando as entidades envolvidas, sem excepção, em nome de valores identitários consensuais;
8 – em oitavo lugar, que se espaço de confiança assente, também, no arranque do Inventário de Bens Patrimoniais nacionais, nunca cumprido por falta de coragem política e guerrilhas interinstitucionais, o qual possa ser levado à prática em moldes de registo exaustivo (ao nívelo dos cinco inventários sectoriais: património edificado, móvel, arqueológico, documental e inorgânico) segundo modelo unívoco e com estruturas responsável, de forma a devolver ao povo português o exacto conhecimento das existências e a estancar a sangria da rapina e da destruição em vastas zonas do tecido nacional;
9 – em nono lugar, que esse espaço de confiança assente na viabilização e regulamentação consensuais de uma Lei-Quadro do Património Cultural, instrumento fundamental de salvaguarda – depois da revista à luz dos princípios da Lei-Quadro n.º 13/85 e de melhorada em substância a proposta (bem) reprovada há meses na Assembleia da República;
10 – depois, que o poder decisório do Estado em matéria executiva no que toca às intervenções em centros históricos e monumentos classificados, assente numa maior eficácia da conservação preventiva, da expropriação concertada, da definição de áreas protectoras e do reforço do restauro, em nome dos princípios pluridisciplinares de trabalho aceites pelas normas internacionais estabelecidas;
11 – depois, ainda, que se processe a regulamentação, em bases legislativas, da prática antiquária, de forma a normalizar a sua actividade (muitas vezes à margem de interesses nacionais), redefinir a noção de «arrolamento» e estancar o escandaloso processo de depauperamente dos bens culturais móveis que se verifica;
12 – em décimo segundo lugar, enfim, e porque existem prioridades de facto a encarar, que se reforce o poder de intervenção a nível do património inorgânico (oralidade, teatro popular, romarias, poesia ingénua, festividades populares), por ser o mais ameaçado de desaparecimento imparável à míngua de registos de documentação antropológica e de instrumentos de controlo adequados.


Responsabilizar o Estado

Só com uma definição estratégia de políticas sectoriais se pode avançar para uma Gestão do Património. O interesse é nacional e, por isso, claramente suprapartidário: Implica uma responsabilização do Estado e um compromisso de todas as partes. Os comunistas portugueses, para quem o ser-se oposição é postura sempre responsável, a defesa da Cultura assume-se como mais um terreno de resistência face ao impacto brutal dos valores do mercado capitalista e da chamada globalização: é, por isso, questão prioritária para os interesses do povo português e para a causa dos trabalhadores.
É também por estas razões que seria interessante implementar-se na próxima legislatura, ao nível do M. C. – mais do que inúteis e multiplicados conselhos e comissões que mais não visam que a «legitimação» das políticas do M. C. –, um Pacto de Assuntos Culturais a firmar entre agentes e instituições (ministérios envolvidos, CNCDP, Fundação das Descobertas, Poder Local, Igreja Católica, FBG, academias, associações, escolas, organismos particulares), pacto esse apto a definir as grandes linhas programáticas de defesa integral da Cultura portuguesa e a comprometer as partes envolvidas no seu cumprimento.


«Avante!» Nº 1338 - 22.Julho.1999