A TALHE DE FOICE
Valores
O criminoso volta sempre ao local do crime,
diz-se, e parece que é verdade.
De nada serve a experiência demonstrando que é quase sempre
assim que os suspeitos são apanhados com a boca na botija,
quando aparentemente ninguém lhes apontava o dedo, fosse pelas
cautelas tomadas, a calculada discrição ou o comportamento, se
não acima de toda a suspeita, no mínimo tão insuspeito quanto
é de se esperar.
De nada serve, também, nos casos em que já se prevaricou, as
profundas e aparentemente sinceras reflexões sobre o erro, o
reconhecimento de que se foi longe demais, as promessas de
contenção futura.
O que a prática demonstra é que quando a tentação é grande
poucos são os estóicos que resistem, quanto mais o comum dos
mortais.
E se a tentação passa pela fama, efémera que seja, pelo
multiplicar dos lucros ou de outras benesses, ou tão só pela
satisfação das mais comezinhas vaidades pessoais, então é
quase certo que se mandam às urtigas os princípios de apregoada
seriedade, as normas de ponderação, as regras de decência que
supostamente presidem a uma vida que se pretende assente em
valores tão elementares como, por exemplo, a honestidade.
Valores que são - deveriam ser - o cimento que liga os seres
sociais que somos numa base sem a qual o futuro não é mais do
que um buraco negro: a confiança.
O que atrás se disse aplica-se a muitas e diversificadas
situações. A dificuldade está, no curto espaço de uma
crónica e no seu contexto necessariamente restrito, escolher os
casos mais paradigmáticos, tantas são as pontas por onde pegar.
Veja-se, por exemplo, o acidente que terá provocado a morte de
JJ Kennedy e outros familiares, e o alarido que o assunto
provocou na imprensa internacional. Com poucas ou nenhumas
nuances está-se perante a repetição da escandalosa derrapagem
registada aquando da morte de Diana de Gales e das aventuras
sexuais de Clinton na Casa Branca.
O criminoso regressou ao local do crime, ávido de sangue. Pouco
importa que JJ fosse um ilustre desconhecido fora dos states e
das olás internacionais. O apelido e paternidade dão pano para
mangas, e o mais elementar trabalho de campo bastou para
desenterrar dos arquivos a imagem de uma criança capaz de
comover o mundo.
Como é de bom tom na hora da morte e é essencial para alimentar
o imaginário popular, retocou-se a história familiar de JJ,
misturando habilmente fama, poder, juventude, maldição,
desgraça.
A saga dos Kennedy entrou definitivamente no domínio da ficção
pelas mãos sempre disponíveis de uma máquina (des)informativa
que não perde uma oportunidade para mistificar as multidões e
arrecadar lucros, que não sendo exclusivamente materiais, acabam
sempre por favorecer a insaciável apetência pelo que de
material se pode usufruir.
Há certamente factos - por natureza objectivos - nas histórias
que nos contam desta «dinastia» (curioso como, sendo rica, uma
família numerosa passa de imediato à condição «nobre», como
se o mundo aspirasse ao regresso ao passado do «sangue azul»,
em que meia dúzia de privilegiados vivam a expensas da imensa
legião de explorados!).
O que não se diz dos Kennedy é que a «maldição» da família
tem raízes profundas na luta pelo poder desencadeada há muitos
anos pelo patriarca, enriquecido pelo contrabando no tempo da lei
seca e pelo seu envolvimento com o crime organizado. É dos
livros e dos filmes que a partir de certo momento, quando o poder
é muito e se passa a ditar as leis, a honorabilidade se compra,
passando a constituir uma segunda pele. Mesmo que, de quando em
vez, haja percalços e seja preciso pagar facturas. Aí fala-se
de «maldição», para que as águas turvas não se agitem.
Ontem, um estudo revelava que morreram em Portugal, em acidentes
de trabalho durante o ano passado, quase meio milhar de
trabalhadores. A notícia foi dada, e esquecida.
A saga dos Kennedy, essa, vai continuar a render manchetes. O
criminoso volta ao local do crime. A confiança é que não.
Anabela Fino