Questões de estilo


Durão Barroso terminou, enfim, a sua volta a Portugal. A derradeira etapa da prova teve lugar na Madeira, na festa de Chão da Lagoa tradicionalmente organizada sob os auspícios de Alberto João Jardim que nela desempenha, também e sempre, o principal papel. Trata-se, quer pelas características sócio culturais de que se reveste, quer pela forma e pelo conteúdo do discurso político ali produzido, de uma festança única e que o afinal imitável Rei UBU não desdenharia promover. A edição deste ano do memorável evento foi antecedida de enorme expectativa: como iria ser recebido e qual iria ser o comportamento do actual líder do PSD?; conseguiria integrar-se no espírito da festa?; Jardim iria repetir-lhe os mimos com que o brindou há uns meses quando da sua ascensão a líder do partido?; se assim fosse, como reagiria o ofendido? – enfim, muitas e várias eram as interrogações que tal visita suscitava.
Feitas as contas, verifica-se que, afinal, tudo correu como era de esperar: o previsível Jardim disse que não disse o que disse há uns meses e o quase tão previsível Barroso, graças a um meritório esforço de postura e a uma notável capacidade digestiva, logrou uma prestação ao nível da festa e do respectivo patrono.

A volta de Barroso tinha como objectivos essenciais, ao que parece, demonstrar a sua condição de líder do PSD, tornar-se conhecido dos eleitores e mostrar que o PS não é melhor do que o PSD na aplicação da política de direita que é a menina dos olhos de ambos. Se conseguiu ou não alcançar todos ou alguns dos seus objectivos é coisa de somenos, sendo certo, no entanto, que nem a viagem de autocarro – com todo o seu foguetório mediático – nem a apoteose de Chão da Lagoa – com tudo o que teve de grotesco e bizarro – lograram apagar, ou sequer atenuar, dos rostos de Barroso e dos que ainda o seguem, as perspectivas com que encaram as próximas eleições: a derrota está-lhes escrita nas faces de forma indelével.
Para além disso, se dúvidas houvesse quanto às diferenças existentes entre o PSD e o PS, a volta ao continente, a festa da Madeira e outras ocorrências subsequentes tê-las-iam dissipado completamente: de facto, os dois partidos têm, às vezes, estilos diferentes.
Guterres faz a volta a Portugal enquanto Primeiro Ministro, seguido por um infindável cortejo de ministros e secretários de estado, elogiando-se por todas as abastanças que nos têm prodigalizado e prometendo mais, sempre mais – mais ou menos como o PSD fez durante uma década; Barroso, quase sozinho, viaja de autocarro, horroriza-se com o que vê e promete que com ele tudo será melhor – mais ou menos como o PS fez durante uma década; Guterres, no poleiro, convoca as Cortes para o Coliseu e a louvação acontece ao som de Vangelis; Barroso, no galho rasteiro de Chão da Lagoa, pula, grita, jardina, tendo como música de fundo ora a «Macarena» ora o «Hino do PSD/Madeira».

Barroso exibiu-se surpreendido e escandalizado face às queixas que ouviu no continente, vindas de pessoas que «não conseguiram emprego porque não tinham o cartão do partido do Governo». (E há-de ter ouvido falar também de outras pessoas que conseguiram emprego precisamente por terem o tal cartão: é bom lembrar os vários milhares de suculentos «jobs» distribuídos a outros tantos famintos «boys»). Mas o que mais surpreende é a surpresa de Barroso face a tão escandalosos compadrios, sabendo ele que o PSD, certamente num estilo por vezes diferente, fez durante dez anos exactamente o mesmo que o PS faz há quatro. Tal como em relação ao uso e abuso do Poder na caça ao voto, modalidade em que PS e PSD pedem meças um ao outro. De qualquer forma, Barroso esteve na festa da Madeira quase como peixe na água. E quando embalou no discurso ousou mesmo afirmar que «em Portugal, há um problema de qualidade de democracia» mas que, em contrapartida, «na Madeira, a liberdade, a democracia, a justiça social e o desenvolvimento têm um nome: Alberto João Jardim»... E quando se esperava uma desculpa pelo lapsus linguae, o líder do PSD reincidiu garantindo que a Madeira «representa a verdadeira tradição de liberdade do PSD».

Passou-se tudo isto depois de Jaime Ramos, secretário geral do PSD/Madeira, entre outras coisas, ter atacado «as garras colonialistas de Lisboa» e ter afirmado, sempre sem pestanejar, que «nós, os madeirenses, somos melhores e mais inteligentes do que o povo do continente». Passou-se tudo isto, também depois de o Presidente do Governo Regional da Madeira e membro do Conselho de Estado ter sentido a necessidade de esclarecer que «não quero a independência da Madeira» e de, no seu estilo característico, ter mimoseado Guterres, o PS e Mário Soares com uma rajada de jardinadas. Porque foi depois de tudo isto, insiste-se, que o líder do PSD disse o que disse e rematou a sua intervenção com um vibrante «Viva a Madeira livre!». Aqui chegados, faltava-lhes apenas, como diz o «Público», cantar em coro «o hino separatista ("Madeira és livre!"), obrigatório nesta festa». E assim fizeram.

Vem agora o PS, por intermédio de Edite Estrela, lavrar o seu inflamado protesto, criticar... as diferenças de estilo. Na verdade, a indignação lida pela dirigente nacional do PS reporta-se quase exclusivamente ao facto de na festa do PSD terem sido ofendidas «algumas das instituições e individualidades mais queridas do povo português», a saber: António Guterres e o seu Governo e Mário Soares. E, no seu estilo, Edite desce ao nível dos que critica. Num discurso que, certamente, ninguém se atreverá a considerar de «dona de casa», acusa Barroso de «cumplicidade assumida» por efeito do seu silêncio e devolve-lhe, bem como a Jardim, todas as «ofensas» que neles critica e ainda mais: «Mafioso rima é com Barroso», Jardim é «um caso do foro psiquiátrico», «tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta».
Curiosamente, a declaração política do PS passa como gato sobre brasas pelo que de mais grave foi dito em Chão da Lagoa. Os ventos de separatismo soprados nos discursos dos três dirigentes do PSD são referidos na nota do PS num estilo tão discreto e comedido que é legítimo supor que se Jardim não tivesse agredido verbalmente as tais «instituições e individualidades mais queridas do povo português», o mais certo era não haver qualquer reacção do PS. Está confirmado: entre eles podem travar-se edificantes batalhas verbais mas não se discute nem disputa nenhuma das mudanças reais de que o país precisa.


«Avante!» Nº 1339 - 29.Julho.1999