Trabalhadoras readmitidas
As 11 heroínas da Filda

Reportagem de Isabel Araújo Branco



Uma fábrica de 180 trabalhadores de Riba de Ave, em Vila Nova de Famalicão, é notícia há cinco meses. Motivo: 11 mulheres recusam aceitar a mudança de turno imposta pela administração e todos os dias cumprem o seu horário à porta da empresa. Dias depois de o Tribunal do Trabalho lhes dar razão e de a administração se recusar a cumprir a sentença, na segunda-feira, as trabalhadoras foram finalmente readmitidas ao serviço acompanhadas por um funcionário judicial.
O dirigente comunista e cabeça de lista da CDU por Braga, Agostinho Lopes, esteve presente.

Os trabalhadores da Filda cantam vitória. As 11 funcionárias que desde 8 de Fevereiro eram impedidas pela administração de entrar na empresa foram readmitidas ao trabalho na segunda-feira, quando um funcionário do Tribunal do Trabalho de Braga, acompanhado pela GNR, obrigou a fábrica de fiação a cumprir a sentença decretada na semana passada.
Termina assim uma longa jornada de luta que se prolongava há cinco meses e que opôs a administração da Filda a cinco bobinadeiras, quatro contínuas e uma gaseadeira que se recusaram a ser transferidas do primeiro turno (das 6 às 14 horas) para o terceiro turno (das 22 às 6 horas).
Todos os dias, de segunda a sexta-feira, as trabalhadoras apresentaram-se à porta da fábrica, embora a entrada lhes fosse vedada. O seu turno era cumprido no lado de fora dos portões, à chuva, ao vento ou sob o calor do sol. Duas funcionárias acabaram inclusivamente por adoecer. Os salários - de 64 mil escudos - foram suspensos.
No passado dia 20, o Tribunal do Trabalho de Famalicão condenou a Filda a reintegrar as trabalhadoras no primeiro turno e a pagar-lhes os ordenados e uma coima de 5 mil escudos por cada dia de atraso. A sentença foi ignorada pela administração, que voltou a barrar a entrada às funcionárias.
Na quinta-feira, a empresa enviou uma carta a cada trabalhadora informando-as que as reintegraria no primeiro turno. Contudo, anuncia que, «em virtude de no momento não haver trabalho disponível para executar, fica dispensada da comparência ao trabalho. Será chamada quando o trabalho o justificar.»
Quanto aos ordenados, a empresa pretendia «esquecer» a ordem do Tribunal do Trabalho: «Vai ser-lhe paga no fim do mês, na altura do pagamento aos seus colegas, a sua retribuição mensal a contar da data da decretação da providência cautelar: 20 de Julho de 1999.» Ou seja, os salários em atraso seriam esquecidos, bem como a multa sentenciada pelo tribunal.
Esta proposta foi recusada unanimemente pelas 11 funcionárias, que não deixaram de se apresentar ao serviço. Depois de entregarem um requerimento ao tribunal, viram finalmente a sentença a ser cumprida.

Seis meses sem desistências

No último dia em que a Filda lhes impediu a entrada, o Avante! falou com as trabalhadoras. Encontrámo-las a cantar em frente ao portão da fábrica, acompanhadas por duas vizinhas, de bandeiras na mão, motivadas para prosseguir a batalha que travam desde Fevereiro.
«Foi meio ano muito difícil, com muita chuva e agora com muito calor. A vizinhança socorreu-nos com agasalhos, com os quartos de banho, com lenha para fazer fogueiras, com chá quando estávamos doentes», explica Rosa da Silva, de 55 anos, funcionária da empresa há 29 anos.
A situação financeira é má. «Sobrevivemos com alguma coisa que tínhamos posto de lado, senão tínhamos de viver dos vizinhos ou de alguém que nos ajudasse», afirma Albina Lobo, contínua, funcionária da empresa há 29 anos. Outras dizem que subsistem com a ajuda dos pais e com os ordenados dos maridos.
«Tivemos que apertar o cinto!», declara Alzira de Sousa, de 49 anos, contínua há 34 anos. «Os nosso filhos a precisarem de dinheiro e nós não termos... Olhe que é muito triste!»
Há algum tempo que a administração procurava rescindir contratos com o acordo dos trabalhadores, de forma a não pagar indemnizações. Cerca de 50 pessoas aceitaram. «Foram tão pressionadas! Chamavam-nas hoje, chamavam-nas amanhã...», diz Josefa.
Rosa da Silva foi a primeira a recusar a proposta. «Fui chamada para rescindir o contrato "amigavelmente" e não aceitei, porque achei que, ao fim de 29 anos de trabalho, era uma injustiça. Isto foi numa terça-feira e na sexta vieram com uns papeis para irmos para o turno da noite e também não aceitámos. Ela avisou que íamos sofrer as consequências, mas eu respondi que não me importava», diz Rosa, referindo-se à gerente da fábrica. «Disse para mim: "Não! Vou para a luta!" Nem que esteja sozinha. Não tenho medo.»
«A gerente quer despedir gente e não quer pagar. Ela diz que escolheu quem não tinha filhos menores. E quem não tem filhos menores não tem direito a trabalhar de dia?», interroga Josefa.
O argumento apresentado pela Filda é recusado pelas trabalhadoras. «A minha filha tem 16 anos e há pessoas com filhos de 12. Se era por não ter filhos, escolhiam empregadas solteiras. Eu fui escolhida por ser delegada sindical.», afirma Maria da Conceição Costa, de 43 anos, funcionária há 29 anos.
«O escritório pode estar fechado à noite, mas continua aberto de dia. Se for para me calar, estão muito enganados porque não conseguem. Eu faço o que for preciso para defender os trabalhadores», acrescenta.
«Uma mulher com 40 anos é nova na idade e velha para trabalhar», diz Albina. «Isto é uma situação que o Governo tem de ver, porque uma pessoa com 40 anos não é velha», continua Josefa.
Rosa da Silva explica que a administração se sentia ameaçada. «Nós na cantina não tínhamos papas na língua. Dizíamos: "É agora ou nunca!" E ela sabe tudo. Ela sabia que se nos despedisse, as que ficavam não faziam nada.»

«A fábrica é o nosso futuro»

Todas consideram que a decisão do tribunal foi uma vitória muito importante, mas sabem que terão de ultrapassar outras dificuldades. «Esta senhora diz que é mais fácil passar por cima do cadáver dela do que irmos lá para dentro. Mas nós vamos, nem que seja pela justiça. As leis são para cumprir. A juíza deu ordem para entrarmos e ela tem de nos deixar entrar», sublinha Albina Lobo.
Umas empunham bandeiras vermelhas com o símbolo do sindicato, outras bandeiras pretas. «É a fome, é a tristeza», dizem. Ao longo do muro da fábrica vêem-se outras bandeiras, todas colocadas por elas.
Entretanto, ouve-se o toque para o intervalo. Pouco depois chegam algumas colegas, com comida na mão, pedaços de algodão nas batas e no cabelo, prontas para dois dedos de conversa.
Maria da Conceição Costa já nos tinha dito que tinham «muitas colegas do nosso lado. Lutaram, estão connosco, mas não podem lutar sozinhas lá dentro. Mostram-nos solidariedade, tanto que foram nossas testemunhas no processo. Algumas não se manifestam mais com medo de represálias, mas com esta administração, se tiver de tocar toca. Não podemos ter ilusões.»
E elas, será que não receiam ser alvo de represálias quando voltarem aos seus postos? «Não tenho medo nenhum e já disse às minha colegas que estivessem descansadas, porque nada irá acontecer. Se isso se passar, há delegados sindicais que automaticamente actuam e, se não pudermos actuar, entramos logo em contacto com o sindicato. Estamos lá para nos defendermos umas às outras, estamos unidas.»
Conceição aposta na normalização da situação: «Eu acho que não vai haver represálias, porque ela nunca pensou que isto se ia passar assim. Ela pensava que não íamos resistir, mas já viu que somos mulheres de luta.»
Na segunda-feira o objectivo destas 11 mulheres foi atingido. «Nós queremos que a firma vá para a frente. Este é o nosso futuro e pode ser o futuro dos nossos filhos», sublinhou Rosa da Silva.


A sentença do tribunal

O Tribunal do Trabalho de Famalicão, na sentença proferida no dia 20, condena a Filda a voltar a colocar as 11 trabalhadoras no primeiro turno e a pagar uma sanção de cinco mil escudos por cada dia de atraso dos ordenados.
«A passagem de uma trabalhadora que, há largos anos, estava a trabalhar num horário que nunca ultrapassava as 14 horas, para um horário compreendido entre as 22 e as 6 horas da manhã implica uma alteração substancial no seu contrato de trabalho, pois que acarreta mudanças significativas nas condições de trabalho já estabelecidas e, por conseguinte, na vida privada do trabalhador», considera o tribunal no texto da sentença.
«E se isto é verdadeiro para um trabalhador do sexo masculino, é ainda mais acentuado para uma mulher, pois sabemos ser diferente a realidade social para cada um dos sexos, seja ao nível das tarefas domésticas, seja ao nível da segurança na rua, aquando das idas e vindas para o local de trabalho», sublinha.
O Tribunal do Trabalho fundamenta a sua decisão com base na obra «Questões Laborais», de Joaquim Domingues Damas, segundo a qual «a flexibilidade da organização do tempo de trabalho possibilita às empresas uma maior adequação dos períodos de laboração às necessidades de produção», gerando contudo «uma maior instabilidade na organização da vida pessoal, familiar e social do trabalhador, agravando a penosidade que normalmente está associada ao trabalho».
«O horário de trabalho é uma cláusula cuja fixação não pode deixar de pressupor a concordância de ambas as partes» devido ao «facto de ele interferir de forma directa com os direitos ou interesses fundamentais do trabalhador», afirma o jurista.
«O direito dos trabalhadores à segurança no emprego, ao repouso e ao lazer, o direito à organização do tempo de trabalho em condições socialmente dignificantes que facultem a respectiva realização pessoal e ainda o direito à protecção da família, da paternidade e da maternidade e da infância, faz com que, à luz destas normas, o horário de trabalho surja como o expediente cuja ratio legis primordial é limitar a situação de disponibilidade do trabalhador perante o empregador e proteger a saúde do primeiro», prossegue Joaquim Domingues Damas.
O autor salienta ainda que «a tutela a nível constitucional da segurança no emprego e da reserva da autonomia dos trabalhadores opõe-se a um regime que confira ao empregador o poder de introduzir unilateralmente modificações no horário de trabalho que impliquem alterações substanciais no contrato de trabalho, ou seja, que acarretem mudanças significativas nas condições de trabalho já estabelecidas e, por conseguinte, na vida privada do trabalhador».

 

Para José Araújo,
do Sindicato Têxtil do Minho e Trás-os-Montes,
«Fez-se justiça»

Numa entrevista realizada na sexta-feira, José Araújo, dirigente do Sindicato Têxtil do Minho e Trás-os-Montes, contou ao Avante! a história das 11 trabalhadoras, falou do seu futuro e comentou a posição da administração da Filda: «A empresa afirmou muitas vezes em audiência que tinha muito trabalho e agora diz que não tem? Isto é uma forma de dizer que cumpre a sentença, não cumprindo.»
José Araújo refere ainda a importância da decisão do Tribunal para a região do Vale do Ave: «Se esta situação pegasse, todas as empresas da zona tentavam pôr os empregados a trabalhar de noite para depois os despedir.»

Avante! - Como se desenrolou este processo?

— Este processo teve início no dia 8 de Fevereiro. Alguns dias antes as trabalhadoras receberam uma comunicação que dizia que a partir de dia 8 tinham de se apresentar no terceiro turno, das 22 às 6 horas. O sindicato foi logo contactado para saber o que era possível fazer. Umas não tinham condições de ir para o terceiro turno por terem idade avançada, outras por terem filhos menores e maridos a trabalhar de noite.
Antes desta comunicação, duas trabalhadoras foram chamadas para rescindir o contrato com a empresa, mas não aceitaram.

Porquê estas trabalhadoras? Terão sido escolhidas de uma forma aleatória ou não?

— Nós pensamos que as trabalhadoras foram escolhidas a dedo, embora a empresa diga que foram escolhidas as mais velhas por não terem filhos. Essa não é a nossa perspectiva, porque uma mulher com 40 anos ainda pode ter filhos. De facto, há aqui pessoas com mais de 40 anos com filhos menores.
O que as trabalhadoras pensam é que a empresa queria despedi-las sem pagar as indemnizações legais. Há pessoas que aqui trabalham já há 30 anos, logo a indemnização seria superior a mil e quinhentos contos.

Como prosseguiu o caso?

— A história vai longa. As trabalhadoras mantiveram-se aqui, chamou-se a Inspecção do Trabalho, que acabou por lhes dar razão e levantou autos à empresa. Quando vimos que a situação não se alterava, apresentámos uma providência cautelar no Tribunal do Trabalho para anular a ordem da empresa. Isso acabou por acontecer, embora tenha demorado algum tempo... E fez-se justiça.
Neste momento, mesmo depois da sentença dar razão às trabalhadoras, a empresa continua a vedar-lhes a entrada. Ontem (quinta-feira), a Filda foi notificada sobre a sentença e apresentou uma carta às trabalhadoras a dizer que podiam aguardar em casa, que seriam reintegradas no primeiro turno, mas que agora não tinham trabalho para lhes dar, e que lhes começariam a pagar a partir do dia 20.

Sem pagar os ordenados em atraso?

— Sim, sem pagar. Tanto o sindicato como as trabalhadoras entenderam que este não era o caminho a tomar, pois o tribunal sentenciou a reintegração. A empresa afirmou muitas vezes em audiência que tinha muito trabalho e agora diz que não tem? Isto é uma forma de dizer que cumpre a sentença, não cumprindo.

Como vêem a decisão do tribunal?

— O tribunal, ao dar razão às trabalhadoras, só fez justiça. É muito importante para elas, para aqueles que têm problemas e para todos os trabalhadores do Vale do Ave. Se esta situação pegasse, todas as empresas da zona tentavam pôr os empregados a trabalhar de noite para depois os despedir.

Há outras fábricas com trabalho nocturno aqui na região?

— Sim, há algumas, mas com pessoas que deram o seu acordo por escrito. Nós não estamos contra o trabalho nocturno, mas consideramos que só deve existir se os trabalhadores estiverem de acordo.

Como comenta a atitude da administração da Filda?

— É uma posição irresponsável e arrogante. Não é assim que se administra uma empresa. A administração não vai ganhar nada com esta situação. Este caso é falado em todo o país e isso não lhe traz nenhumas vantagens.

Outras queixas apresentadas incluíam discriminação sexual e salários em atraso. Como é que decorreram esses processos?

— Apresentámos queixas ao Governador Civil e à Comissão para a Igualdade no Trabalho, que condenou a empresa e considerou que a empresa teria de reintegrar as trabalhadoras no primeiro turno.

Pode-se mesmo falar de discriminação sexual?

— Como é que se pode pôr mulheres a trabalhar de noite, se elas não têm condições para isso? Por muito que queiramos que a mulher tenha igualdade, a verdade é que ela tem de fazer o trabalho doméstico. Como é que uma mulher com filhos pode trabalhar de noite e dormir de dia? Uma pessoa que tenha de organizar a sua vida durante o dia como é que pode estar a dormir a essa hora?

Como tem sido a reacção dos colegas?

— É boa, embora tenham algum receio em lutar. Logo no início marcámos uma greve de solidariedade a que os trabalhadores aderiram.

Durante estes seis meses têm mostrado solidariedade ou pressionado a administração?

— Sim, inclusive nos intervalos há trabalhadoras que vêm cá para fora para estarem com as colegas.
José Araújo falou ainda na possibilidade de as trabalhadoras sofrerem algum tipo de represálias, tal como muda-las de lugar, retirar-lhes as categorias ou coloca-las nas limpezas. Estas acções são ilegais, mas o sindicalista considera que se podem verificar numa tentativa de «amedrontar as trabalhadoras e a fazer com que elas se despeçam».


«Avante!» Nº 1339 - 29.Julho.1999