Estórias do «fim da história»

Por José Casanova


A pretexto da comemoração do aniversário da sua profecia sobre o fim da história, Francis Fukuyama decidiu, por iniciativa pessoal ou empurrado por alguém, dar os parabéns a si próprio. Fê-lo num artigo intitulado «Reflectindo sobre o fim da História dez anos depois» («Público», 17.7) mas, por razões que adiante invocarei, estou em crer que a peça há-de ter sido publicada na íntegra em vários jornais e revistas do Planeta.

O artigo constitui uma exaltação do génio profético de Fukuyama e tem em vista reafirmar o acerto milimétrico de todas as profecias há dez anos vertidas pelo actual «Professor de Política Pública na Universidade George Mason (EUA). Aos «críticos que me têm exigido regularmente que reconsidere a minha opinião de que a História terminou, na esperança de que eu volte atrás», o Professor responde, peremptório, que não senhor, nem pensem nisso, não retira nem uma vírgula ao que há dez anos profetizou, ou seja, o fim da História é um facto, uma realidade indesmentível e confirmada. E se a realidade, a inteligência, o bom senso rejeitam todos os dias as suas profecias, então são a realidade, a inteligência e o bom senso que estão erradas e devem curar de se adaptar à verdade do profeta.
A obra de Francis Fukuyama, nascida na sequência do fracasso das tentativas históricas de criação de sociedades socialistas, alternativas ao capitalismo, levadas a cabo num conjunto de países do Leste da Europa, constitui um hino ao capitalismo na sua modalidade neoliberal: o socialismo está definitivamente vencido; o capitalismo - mais concretamente: o capitalismo norte – americano, é definitivamente vencedor, a história chegou ao fim, acabou, parou neste sistema ideal onde os conflitos sociais deixaram de ter lugar e razão de ser e onde as condições de vida gerais atingiram o seu expoente máximo por efeito de uma bondade e de um humanismo intrínsecos do sistema capitalista.
O profeta começa assim a sua prosa aniversariante: «Este Verão faz dez anos que publiquei o meu artigo "O fim da História?" no jornal "The National Interest", e por esta ocasião pediram-me que escrevesse uma retrospectiva sobre a minha tese original». Detenhamo-nos um pouco neste intróito: ao situar a origem daquilo a que chama «a minha tese» no texto publicado no referido jornal, Fukuyama revela, no mínimo, uma clamorosa falta de memória e é lamentável que não concretize aquele «pediram-me», que não diga quem lhe pediu tal coisa. Quero eu dizer com isto que esta história está mal contada, que também aqui Fukuyama não chegou ao fim da história... Mas antes de avançar por aí demos uma vista de olhos por um excelente trabalho produzido por Susan George - «Comment la pensée devint unique» - publicado no «Monde Diplomatique» de Agosto de 1996.


Ideologia neoliberal e Chicago Boys

Seguindo o rasto do processo de formação e da difusão da ideologia neoliberal desde os fins do século passado, a autora demonstra que o edifício teórico e ideológico do neoliberalismo, com todos os seus ingredientes, começou a ganhar forma na altura da Segunda Guerra Mundial e mostra que passadas algumas décadas, «graças à inteligência estratégica dos seus promotores e a financiamentos de milhões de dólares e apesar dos resultados geralmente desastrosos das medidas que inspirou – tornou-se, nos tempos actuais o grande alicerce do pensamento único». A Universidade de Chicago foi desde o início o berço de toda esta operação, «o núcleo duro do neoliberalismo nascente»: foi sob os seus auspícios que, na década de 40, foram publicadas as mais influentes obras sobre a matéria, nomeadamente as obras de Milton Friedman. Anote-se que «a escola de Chicago», composta por economistas conhecidos por «Chicago Boys», tornou-se célebre, a sua doutrina económica, filosófica e social passou a ser ensinada em toda a parte e os seus membros disseminaram-se pelo Mundo. Exemplo bem conhecido dessa acção, do seu conteúdo e das suas consequências é o «milagre económico» que Milton Friedman levou à prática no Chile de Pinochet, com a colaboração de «Chicago Boys» chilenos - «milagre» que tinha como objectivo essencial transformar o país num lugar seguro para os investimentos norte-americanos, o que passava, e passou pela criação das condições políticas e sociais necessárias ao «milagre»: o assassinato de milhares de pessoas, a destruição brutal dos sindicatos e das organizações políticas das massas populares (William Schulz, «Terrorismo de Estado»).

Fundações e Institutos

Para levarem por diante com o êxito o seu programa, os neoliberais verificaram que a sua primeira tarefa consistia em «transformar a paisagem intelectual», na medida em que a propagação das ideias é o ponto de partida prioritário. Por isso era necessário criar as condições exigidas pela produção, publicação, ensino e difusão da ideologia neoliberal, ou seja, dotarem-se dos meios financeiros e institucionais adequados. E assim se fez. Naturalmente, os principais polos de produção e difusão dessa ideologia situam-se nos Estados Unidos da América. Muitas foram as «fundações», os «institutos», etc que, logo a seguir à Revolução de Outubro e, depois, por alturas da Segunda Guerra Mundial, foram criadas e postas a funcionar, impulsionadas por milhões e milhões de dólares – desde a «Hoover Institution on War, Revolution and Peace», fundada em 1919 e «interessada» essencialmente nas revoluções russa e chinesa, até às mais recentes, como seja a «Heritage Foundation», cuja estreita ligação à presidência de Reagan a tornou célebre. E tantas e tão diversificadas são estas instituições que não há área importante que escape à sua «benção» - a título de curiosidade refira-se o «Cato Institute», cuja especialidade tem a ver com o estudo das privatizações e que desenvolve intensa actividade e abundante teoria sobre a matéria.
A partir da década de 60, todas estas estruturas viram aumentados os seus apoios financeiros graças à generosidade de «fundações familiares». Também as verbas para a comunicação social atingem números significativos (ainda a título de curiosidade: entre 1990 e 1993, quatro importantes publicações neoliberais – entre as quias se encontra «The National Interest», a tal revista onde Francis Fukuyama publicou a sua profecia do fim da História – receberam , de diversas fontes, qualquer coisa como 27 milhões de dólares).


Fundação Olin

De um outro tipo de «fundações» é necessário, ainda, falar. Trata-se das fundações criadas e pagas pelas grandes fortunas industriais norte-americanas: «Coors» (cerveja), «Scaife e «Mellon» (aço) e, especialmente, Olin (produtos químicos). Detenhamo-nos nesta última: segundo Susan George, a «Fundação Olin», cujo objectivo essencial é o de «reforçar as instituições económicas, políticas e culturais nas quais se baseia a empresa privada» - objectivo ao qual dedicava já, em 1985, 55 milhões de dólares - financia a regência de cadeiras nas universidades mais importantes dos EUA, para as quais, naturalmente e por isso mesmo, nomeia os professores que vão ocupar essas cadeiras e dirigir os centros de estudos. É assim que existem «cadeiras» Olin de direito e de economia nas universidades de Chicago, obviamente, e Harvard, Yale e Stanford, nomeadamente. Estes professores – produtores da «ideologia Olin» - são, como é natural, muito bem pagos e são recrutados por todo o Mundo. Por exemplo, o historiador francês François Furet – que foi o primeiro designado para a coordenação do «Livro negro do comunismo» (tarefa que não pôde concluir por ter falecido e na qual foi substituido pelo nosso conhecido Stephane Courtois) – chegou a ser director do «Programa John M. Olin de história da cultura política» na Universidade de Chicago, tarefa pela qual recebeu a interessante quantia de 470.000 dólares.
Mas voltemos ao profeta Fukuyama e sigamos, ainda que a passo largo, o percurso da sua tese do fim da história, das origens até ao artigo recente. Foi assim: «Em 1988, Allan Bloom, director do "Centro Olin para o estudo da teoria e da prática da democracia" na Universidade de Chicago (que recebe 36 milhões de dólares por ano da Fundação Olin), convidou um obscuro funcionário do departamento de Estado para pronunciar uma conferência». O convidado, Francis Fukuyama, óbviamente, não se fez rogado e decidiu proclamar a vitória total e definitiva dos EUA e do neo- liberalismo e decretar o fim da História. A conferência foi, a seguir, passada a escrito e publicada em forma de artigo em «The National Interest», cujo director, Irving Kristol, era professor Olin numa universidade, ao preço de 326 mil dólares. Depois, Kristol convidou Bloom e Samuel Huntington (director do «Instituto Olin de estudos estratégicos» da Universidade de Harvard, criado graças a um financiamento Olin de 14 milhões de dólares) para, com ele, comentarem o artigo de Fukuyama nesse mesmo número da revista. Ou seja, e como observa Susan George: o "debate" sobre uma conferência Olin, travado por quatro beneficiários de fundos Olin numa revista Olin, teve imediatas repercussões Olin: saíu nos inevitáveis «New York Times», «Washington Post» e «Time» e correu mundo transformado em livro e assinado por Francis Fukuyama, cujo vem agora comemorar o décimo aniversário do «artigo», esquecendo-se da conferência que, a expensas da Fundação Olin, foi ovo da profecia e do profeta – e ainda por cima não nos dizendo quem é que lhe «pediu» a comemoração...
E assim chegámos ao fim da estória.


«Avante!» Nº 1339 - 29.Julho.1999