A Talhe de Foice
Esquizofrenias


«Fizeram de mim um preservativo, usaram-me e deitaram-me fora!», bradou esta semana Tino Covilhão nas páginas do Tal & Qual. A acusação, sem dúvida penetrante e incisiva, farpeou-a o presidente da junta de freguesia de Rans no vasto lombo do PS.

Vitorino Silva - que esquizofrenicamente se autoproclamou «Tino Covilhão» como «nome de guerra» para uso numa «carreira política» -, é o jovem calceteiro da freguesia de Rans, no concelho de Penafiel, que nas últimas eleições autárquicas arrebatou para o PS a presidência da Junta. No congresso do PS realizado há cinco meses no Coliseu dos Recreios de Lisboa, subiu à tribuna acometido por uma energia demencial e apetrechado com um verbo diluviano para proclamar o seu fervor ao líder e ao partido. Almeida Santos, que dirigia os trabalhos, achou por bem dar-lhe corda e dilatar-lhe o tempo de intervenção que estava a indeferir ou a limitar a todos os outros congressistas, nomes sonantes incluídos.
A deferência do presidente da mesa resultava de um calculismo óbvio: explorar a paixão simplória do orador pelas cores do PS, na presunção de um espectáculo pitoresco de «militância popular» a oferecer aos congressistas e ao país. O facto de Tino Covilhão não ter nada para dizer além de um aluvião de encómios delirantes ao líder, ao partido e «às bases» - de que ele se imaginava o Enviado -, não travou a tentação de Almeida Santos em se aproveitar do desvario.
Quanto ao facto de Tino não ter nada que se visse para dizer, afinal de contas, quem o tinha, naquele congresso?!...
O resultado é conhecido: após uma longa e deprimente galhofa de toda a assembleia a aplaudir os desatinos do Tino, este desembestou para a mesa da presidência a abraçar convulsivamente António Guterres e quem lhe aparecesse à frente. Seguiu-se uma fulgurante ascensão à ribalta, com Tino a ser recebido na sede nacional do PS e todos os órgãos de comunicação social a projectarem-no para o estrelato. Na televisão, abriu todos os telejornais e foi convidado de honra de todos os canais, apareceu nos jornais diários e semanários, deu entrevistas a rádios e até chegou a «artista» convidado em escolas e universidades.
A demagogia florentina de Almeida Santos e dos principais dirigentes do PS em se aproveitarem da demagogia simplória do Tino transformara-se numa bola de neve. Tino levou à letra os elogios e promessas de circunstância dos dirigentes do seu partido e cismou que o PS o iria indigitar para deputado. É claro que ninguém o fez. Bateu em vão a todas as portas, incluindo as dos que lhe alimentaram o sonho. Segundo ele, Almeida Santos respondeu-lhe que «estas coisas eram complicadas e difíceis», Narciso Miranda (ele próprio um exemplo de modesto funcionário público que ascendeu ao topo do PS) «enrolou-me com paleio e acabou por não dizer nada» e António Guterres, pura e simplesmente, nunca o recebeu, talvez com medo de levar um novo e esmagador abraço.
Agora, o Tino diz que «o PS é um partido de doutores e engenheiros e não do povo, como eu pensava que era», devolveu o cartão do partido «porque isto não é maneira de tratar um militante de base», afirma que, no PS, «fizeram de mim um preservativo, usaram-me e deitaram-me fora», garante que vai chegar a deputado «como independente» porque «o povo quer ver-me em S. Bento» e anuncia que já está a escrever um livro que se chamará De um palanque a outro.
De um palanque ao outro, o que o Vitorino de Rans ignorava é que a esquizofrenia do PS é muito mais grave que a sua, que ainda muda o nome para «Tino». A coberto do mesmo nome, o PS é o maior caso de dupla personalidade conhecido no país.
Nomeadamente quando se compara a sua retórica «socialista» com a sua prática capitalista. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1339 - 29.Julho.1999