Regresso aos factos


Quando o director do «Expresso», num histórico assomo de independência e imparcialidade, aqui há umas semanas, falando de Durão Barroso, exclamou desvanecido que «Temos homem!», houve certamente quem empreendesse um esforço racional para perceber, mesmo adoptando os discutíveis critérios dominantes, o que é que o novo líder do PSD teria a mais que Marcelo Rebelo de Sousa - em «carisma», facilidade de expressão, «look», linha política - para receber um carinho mediático tão ostensivo.
Salvo melhor opinião, o empreendimento era desnecessário e o esforço inútil. Pela simples razão de que o desvanecimentos e o carinho face a Durão Barroso repousam essencialmente no interesse em animar a todo o custo a ficção eleitoral de uma «bipolarização« PS-PSD tão artificialmente dramatizada quanto politicamente inexistente.

Esta suposta «bipolarização» é um seguro de vida tão bom para a política de direita que quase se pode prever que continuaria a ser soprada, estimulada e propagandeada ainda que à frente do PSD estivessem ou o inefável Marques Mendes ou mesmo esse excelso democrata de que se dá pelo nome de Alberto João Jardim.
E é o facto de ser esta a grande aposta de fundo (que convém muitíssimo ao PS e ao PSD) que explica que, por artes mágicas, a concorrência isolada do PSD passasse a ser muito mais promissora que a falecida AD, que os 12 pontos a que o PSD ficou do PS nas europeias sejam vistos com um insignificante detalhe a esquecer rapidamente e, sobretudo, que cada conflito verbal entre o PSD e o PS a dois meses das eleições pareça valer mais do que a cordilheira de alianças e entendimentos reais entre os dois ao longo dos últimos quatro anos.

Que não haja ilusões: já estão em adiantado aquecimento os motores da formidável máquina de endrominação e diversão que a seguir nos vai oferecer todos os dias o espectáculo rosa e laranja das faiscantes refregas verbais, da esmerada gestão das «frases assassinas» e do tenso corpo a corpo nas sondagens que ajudem a aprisionar os eleitores na dança das etiquetas e em opções de voto falsamente delimitadas, e sirvam sobretudo para rasurar a memória do que se passou e se viveu e para contrariar escolhas eleitorais fundadas numa reflexão soberana sobre a política e as políticas necessárias ao país.

Sem dúvida que, no centro da nossa intervenção eleitoral, terão de estar os méritos reais e notórios da nossa luta e do papel que desempenhámos nestes quatro anos, as nossas distintivas propostas e orientações para uma viragem à esquerda na política nacional, uma infatigável demonstração de como o reforço da CDU será um sinal forte, marcante - e com assinalável utilidade - da exigência de uma nova política.
Mas, por mais que já o tenhamos dito, por mais que alguns não gostem de ouvir, sob pena de sermos submergidos pelo festival de ilusionismo montado para que tudo se esqueça e, portanto, tudo se perdoe, nada nos dispensa de um vigoroso regresso aos factos, aos acontecimentos, às opções e procedimentos capitais desta legislatura, quase todos ilustrando, não a «guerra» entre PS e PSD e PP que agora nos querem impingir, mas o folhetim dos seus estremosos entendimentos e fraternas alianças. — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1339 - 29.Julho.1999