HASSAN II
Amigo de quem?


O respeito devido a todo e qualquer ser humano na hora da sua morte não pode servir para exagerar méritos eventuais e muito menos para branquear e apagar responsabilidades. Nem há "razões de Estado" - e nós consideramos de alto interesse nacional o desenvolvimento de estreitas relações de boa vizinhança e cooperação com os países e povos do Magreb e em particular com Marrocos - que justifiquem os elogios insensatos que a figura de Hassan II suscitou nas instâncias oficiais, do Presidente da República ao Primeiro Ministro. O "amigo muito querido de Portugal" (segundo Guterres e Mário Soares) era afinal muito pouco amigo do seu próprio povo, que governou de modo autocrático e repressivo ("pulso de ferro" no cuidado eufemismo de M. Soares, esse sim seu "amigo" próximo), e que deixou mergulhado num atraso medieval incontestado.

Hassan II seria um dos homens mais ricos do mundo. Como o "grande Leopardo", o seu grande amigo Mobuto com quem conspirou intensamente contra a nova África independente, contra uma OUA anticolonialista (que tem boicotado desde o reconhecimento por esta da República Árabe Saharaui Democrática) e em particular contra Angola. As estreitas ligações entre o regime de Marrocos e a Unita de Savimbi são conhecidas; a hora não é de esquecer mas de lembrar que se Angola continua mergulhada no drama da guerra é em grande medida porque Marrocos tem sido uma plataforma fundamental de apoio político, económico e militar às forças de Savimbi. Hassan II desempenhou também um importante papel na estratégia do imperialismo para o Mediterrâneo e Médio Oriente. É particularmente notório o seu apoio aos acordos de Camp David (entre Israel e o Egipto) que em 1979 abriram uma brecha decisiva na unidade do mundo árabe. Não se tratou de coisa pequena. Como coisa pequena não foi o sequestro e assassinato de Ben Barka em 1965.O principal opositor da monarquia alauita era também um dos mais prestigiados e consensuais dirigentes do movimento de libertação nacional dos povos de África, Ásia e América Latina. O seu assassinato nas vésperas da Conferência Tricontinental de Havana, significou um importante golpe nos esforços de organização e de luta anti-imperialista.

Foi por prestar tantos e tão relevantes serviços à causa do "mundo ocidental" que a monarquia marroquina contou com tanta compreensão para com a guerra contra o povo Saharaui. Desde a "Marcha Verde" de oportuna exaltação patrioteira (1975) à ilegal anexação do território daquela antiga colónia espanhola e à sabotagem sistemática das resoluções da ONU e dos acordos para o referendo de autodeterminação do Sahara, o regime marroquino teve sempre os favores e a cumplicidade das grandes potências imperialistas.

Mas é em relação à realidade da exploração e opressão do povo marroquino que se revela a maior hipocrisia dos panegíricos a Hassan II. Durante os seus 38 anos de reinado houve de tudo: repressão sangrenta de lutas e levantamentos populares, assassinatos políticos, "desaparecimentos", perseguições, torturas. Para não falar de manipulação religiosa do "Comandante dos Crentes". A "abertura" de 1997 abre sem dúvida um capítulo novo na história contemporânea de Marrocos. Mas, sendo fruto da luta e do descontentamento popular e democrático, é na sua essência uma tentativa de alargar a base de apoio e salvar a monarquia marroquina. A ver vamos. Uma realidade essencial é entretanto secundarizada ou mesmo completamente ignorada. A insultuosa riqueza do Palácio e a ostentação da oligarquia marroquina (como sempre agindo como intermediária e cúmplice das multinacionais e dos grandes centros do imperialismo) assenta na exploração violenta dos trabalhadores e na miséria da grande maioria. 50% da população é analfabeta e 40% das crianças não vai à escola. O desemprego atinge mais de 20% da população activa, com 50% entre a juventude. Com excepção da Mauritânia, Marrocos é de longe o mais atrasado e medieval dos países do Magreb, o que não impediu o "déspota iluminado" de erguer em Casablanca a maior mesquita do mundo depois de Meca.

Aqui fica esta breve anotação empenhada no respeito pela verdade. Que é sempre revolucionária. Com o convencimento de que, sejam quais forem as versões oficiais do "pensamento único" sobre "a vida e obra" de Hassan II, este será arrumado pela História no campo do obscurantismo e da reacção. — Albano Nunes


«Avante!» Nº 1339 - 29.Julho.1999