A direita contra a Justiça,
ou as pulgas e os elefantes

Por Carlos Gonçalves


Vai escorrendo a "silly season", um pouco mais chuvosa e pateta do que é costume - Portas deu em ordenhador, Jardim, desbragado, e para alguns inimputável, acusa Guterres de "mafioso", este ameaça com cenas escabrosas e Barroso dá-se por entendido nesta fedorenta troca de "galhardetes". Tudo recorrente, tal qual a sem-vergonha eleitoralista do PS. Novidade só na virulência da direita contra a Justiça.

A direita assumiu-se contra a Justiça. O PSD, Proença de Carvalho e outros clarificaram intensões: "legitimação democrática do poder judicial", o que significa, descodificando, colocar magistraturas e tribunais sob a alçada do Governo e reduzir gravemente a respectiva independência, que a Constituição garante e regula. Aliás, Durão Barroso defendeu uma revisão Constitucional antecipada com este objectivo.
Procurando instrumentalizar as contradições corporativas das magistraturas e os sintomas da crise na Justiça, pela qual, com o PS, é o grande responsável, o PSD ataca violentamente o Ministério Público – a que Luis Filipe Menezes chama "nova PIDE" – e preconiza "o princípio da oportunidade na investigação criminal", ou seja, atribuír ao Governo a capacidade de definir que investigações fazer ou não, com que meios, etc.
É caso para dizer que, se as coisas estão como estão - o sistema judicial está "preocupado com as pulgas e deixa passar os elefantes", como dizia recentemente o Secretário Geral do PCP - então como não seria com a consumação destes velhos objectivos da direita?!
E não é possível separar este ataque e a situação do sistema Judicial, das políticas de direita prosseguidas agora pelo PS, como antes pelo PSD.
A crescente subordinação do poder político ao económico e a "panelinha" de inconfessáveis cumplicidades entre os grandes senhores do dinheiro, transnacionalizados, e o "executivo de serviço", são causa das injustiças, regressões e exclusões sociais, mas também da gestão criminosa dos bens públicos e privatizações, da fuga ao fisco dos abastados, da criminalidade económica, corrupção e financiamento partidário ilegítimo.
Acumulam-se os escândalos envolvendo negócios e política. Mas são poucos os processos findos, porque ou não existem, por falta de queixoso ou "insuficiência de indicios", ou são inconclusivos, esboroando-se na falta de provas, na morosidade e debilidades judiciárias, ou prescrevem, perdidos nos vazios da Lei, na manipulação dilatória do sistema garantístico, ou no manobrismo ilegal de poderes mais ou menos ocultos.
E nem sempre fica claro o repúdio, ou sequer a inocência, dos responsáveis judiciais, relativamente a estas manobras.
Acontecem "coincidências" de interesses, partidários ou outros, com a fuga de informações em segredo de justiça, ou com este ou aquele procedimento processual, ou a sua ausência. Há momentos em que a "gestão pendular", ou de oportunidade extra-judicial, parece preterir o primado da Lei.
No parlamento, são muitos os inquéritos que ficam por fazer, enquanto outros se esfumam na convergência formal ou informal de PS e PSD, como no inquérito à privatização da Mundial-Confiança e do Banco Tota, ou na responsabilização dos governantes da tutela no inquérito à JAE.
PS e PSD são assim responsáveis pela impunidade em que medra o compadrio, a corrupção e o negocismo e infuenciam nesse sentido o Poder Judicial.
O PSD é responsável por, em dez anos, nada ter feito pela eficácia da investigação dos crimes fiscais, criminalidade económica e de "colarinho branco". E o PS avançou pouco e lentamente, o que, face à evolução destes fenómenos criminógenos, significa que a capacidade efectiva de os enfrentar não progrediu nestes últimos anos.
Assim, cresceu a desigualdade dos cidadãos no acesso ao direito e aos tribunais e na utilização do sistema garantístico, cresceu a morosidade das investigações e da Justiça, e o seu custo.
O sistema de Justiça tornou-se, objectivamente, um factor de privilégio e domínio de classe.
Para os "elefantes" que vão escapando à Justiça, para o PSD, o PP e acólitos e para os sectores do PS que já assumiram sem hesitações a natureza de classe da sua política, é assim que deve continuar, mas ao abrigo de quaisquer surpresas.
Para eles, há tudo a ganhar com a sujeição do Poder Judicial ao Poder Executivo, há todas as vantagens na tutela do poder económico sobre todas as instâncias do Estado.
Mas, para a democracia, há tudo a ganhar na reforma democrática da Justiça, na sua independência, eficácia, celeridade e democratização, na salvaguarda de direitos liberdades e garantias de cidadania.


«Avante!» Nº 1341 - 12.Agosto.1999