A NATO e a privatização das Forças Armadas

Por Rui Paz


Em 1989 as Nações Unidas aprovaram em sessão plenária «a convenção internacional contra o recrutamento de mercenários», a qual entrará em vigor quando for ratificada por pelo menos 22 dos seus membros. Até hoje apenas 18 Estados assinaram a convenção e exceptuando a Itália nenhum outro membro da NATO mostrou interesse em cumprir aquela disposição da ONU.

Calcula-se que em todo o mundo cerca de cem mil mercenários se encontram ao serviço de exércitos privados controlados por firmas que embora possuam as sedes nos chamados paraísos fiscais o seu capital provém essencialmente dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha ou Israel , precisamente Estados que à revelia do direito internacional e das resoluções das Nações Unidas mais insistem, dos Balcãs ao Caucaso, da Anatólia ao Golfo Pérsico e à Palestina, em impor pela força das armas aquilo que decretaram constituir os seus «interesses vitais». Muitas destas firmas, que trabalham em íntima ligação com a NATO e os governos dos Estados membros da Aliança, são dirigidas por oficiais das Forças Armadas na reserva agora ao serviço do capital privado.
Foi assim que antes do desencadeamento da agressão contra a República da Jugoslávia, a firma americana «Dyncorp Leaderschip» foi contratada pelo Pentágono para incorporar o contingente de observadores no Kosovo. Também na Bósnia, perante o desinteresse das comunidades locais (sérvia, croata e muçulmana) em constituírem um exército regular, os Estados Unidos decidiram recorrer aos mercenários da «Military Professional Ressources» para simular o cumprimento de algumas cláusulas dos chamados acordos de Dayton. E ainda recentemente a televisão holandesa noticiava que o contingente daquele país em «missão humanitária» da NATO na Albânia se retirava para dar lugar à «iniciativa privada».

O grande banquete

Num artigo recente do seu correspondente em Washington, Marc Pitzke, intitulado «O grande banquete», o semanário alemão «Die Woche» levanta uma ponta do véu sobre os grandes grupos económicos que na sombra estimulam, controlam e velam pela imagem e estratégia militar e geopolítica da Aliança.
Oito milhões de dólares foi o investimento feito por cerca de quarenta grandes firmas do «Comité Anfitrião» (Gastgeberkomitee) na cimeira de Abril comemorativa do cinquentenário da fundação daquela organização militar em Washington.
Na lista dos patrocinadores, além de alguns velhos símbolos do globalismo americano como a Coca Cola , figuram os gigantes das indústrias armamentistas, petrolíferas e energéticas. A firma «Raytheon» - produtora dos mísseis Tomahawk que durante a cimeira destruíram a rádio de Belgrado - contribuiu com cerca de 50 mil dólares. O seu chefe, Daniel Burnham, confessou abertamente que a guerra no Kosovo lhe rendia pelo menos quatrocentos milhões de dólares, isto é, um quinto de todas as receitas anuais. O grupo de tecnologia «Northrop Grumman», que durante a transmissão directa pela CNN das cerimónias de Washington conseguiu fazer passar alguns anúncios publicitários sobre os seus mísseis dirigíveis, também faz parte do célebre «Comité Anfitrião».
A «DASA», uma filial armamentista do grupo «Daimler-Chrysler», entusiasmada pelo sucesso do papa-mobil nas recepções e viagens pontifícias, colocou à disposição da NATO 130 viaturas e contribuiu com mais trezentos mil dólares para as despesas da cimeira.
Mas a estrela do encontro de Washington, simultaneamente membro do comité patrocinador e convidado de honra do encontro, foi a «Boing», o sexto produtor americano de armamento e fornecedor dos «cruisemissiles» com que a força aérea americana bombardeou durante meses a República Federal da Jugoslávia. O seu representante em Washington, Christopher Hansen, aproveitou a ocasião para apresentar o helicóptero de combate Chinook CH-47 F, assim como o F-18E / F-Jet, no qual o Pentágono está interessado e promete fazer uma encomenda no valor de 880 milhões de dólares.
Alan Blinken, vice-presidente do comité organizador, confirmava que aqueles gigantes da produção armamentista se interessam pela Aliança porque «reconhecem a sua importância para o futuro do nosso mundo». O facto de a nova estratégia contida na «Defense-Capabilities-Iniciative» conduzir a uma maior fusão tecnológica entre as tropas da NATO e exigir dos países membros encomendas e custos na ordem dos milhar de milhões de dólares não altera em nada o carácter filantrópico e desinteressado das firmas patrocinadoras da cimeira.
Não nos devemos pois admirar se um dia destes descobrirmos nos écrans da CNN - à semelhança do que já acontece com os patrocínios desportivos nas camisolas de atletas e jogadores - dísticos publicitários dos grandes impérios económicos colados junto das divisas e nos uniformes de oficiais que dirigem operações militares da NATO.


Pinochet e o novo conceito estratégico

No já citado artigo do «Die Woche», Marc Pitzke descreve como um coronel alemão enviado pelo Ministério da Defesa à cimeira de Washington recebia os jornalistas num edifício não muito distante do local onde decorria o beija-mão a Clinton.
«Bem vindos à nossa feira internacional!». «Permitem-me que lhes apresente as nossas novidades mais recentes?» ...«olhem só para isto».
Em salas escurecidas representando diferentes países como possíveis teatros bélicos, o coronel Friedrich Böschen, radiante, esclarecia que «esta é a nossa realidade», e mostrava aos seus irmãos da «parceria para a paz» uma guerra virtual simulada no computador contra o minúsculo Estado «AZUR» e o »Partido Popular dos Trabalhadores» para a conquista de umas «minas de urânio». O marechal da força aérea britânica, Chris Loville, ordenava o início do exercício militar, «ready for action». Só mais tarde os jornalistas ali presentes se aperceberam que não se tratava unicamente de uma demonstração de estratégia militar, mas também de um negócio de armamento integrado na cimeira. De facto, o coronel Böschen, que trazia um pequeno letreiro de «vendedor», era assistido por Robert Bakker, um civil da firma «CAE, Elektonik S.A.R.L.» da cidade alemã de Aachen (Aix-la-Chapelle), que confessava o grande interesse despertado pelo seu produto num grupo de generais americanos ali presentes.
A coincidência de objectivos, cenário e tipo de inimigo definidos nas manobras simuladas no mercado bélico da cimeira de Washington e as circunstâncias que rodearam a preparação, desencadeamento e execução do sangrento golpe militar de Pinochet em 1973 no Chile são por demais evidentes.
A recusa de então por parte da administração americana em aceitar a nacionalização pelo Governo de Unidade Popular das minas de cobre «El Teniente», controladas pela «Anaconda» e que representavam na altura 62 por cento do mercado norte-americano («interesses vitais»); a conspiração conduzida pela ITT e pelos serviços secretos americanos e que culminou com o bombardeamento do palácio de La Moneda, das «rádio Portales, Corporacion e Magallanes..., de pontes, comboios e vias férreas...», a que o presidente eleito Salvador Allende se refere nas suas últimas palavras antes de ser assassinado pelos generais mercenários ao serviço do Pentágono; ou se preferirmos os massacres perpetrados nas florestas da Colômbia ou nas montanhas de Chiapas sob a direcção dos conselheiros militares americanos, constituem hoje inesgotáveis fontes de inspiração para os programas digitais e exercícios militares do Novo Conceito Estratégico da NATO.


O cheiro do petróleo

As declarações prestadas pelo general Engelhard, responsável pelos exercícios aéreos da chamada «parceria para a paz», ao programa a «Marcha para Leste» recentemente apresentado pela ARD e WEST 3, não deixam qualquer dúvida sobre o âmbito da actuação da NATO e a sua função de garante do controlo das «regiões com abundantes fontes de riqueza naturais» e das respectivas vias de transporte marítimas e terrestres. Nos numerosos trabalhos publicados nos últimos tempos sobre os principais beneficiários da chamada «parceria para a paz» surgem em primeiro lugar as companhias petrolíferas americanas e europeias, como por exemplo a «BP» (GB) e a «AMOCO» (EUA) no Azerbaijão, ou a «Exxon» (EUA), a «MOBIL OIL» (EUA) - fundidas desde Dezembro de 1998 - e a «Chevron» (EUA) no Casaquistão, etc..
Mas também os acordos de Rambouillet (Apêndice B), que previam a ocupação militar total da Jugoslávia, estavam impregnados pelo cheiro do petróleo, como se pode ler no «Handelsblatt» de 13 de Outubro de 1998 ao explicar que o plano para a reconstrução do oleoduto do porto romeno de Constanta para Trieste, apoiado pelos Estados Unidos e o consórcio energético «ENI», e que deverá passar pela Hungria, Eslovénia e Croácia, «não dá garantias de segurança por atravessar a Sérvia». Várias firmas americanas propõem-se construir o pipeline cujo estudo já custou ao governo americano 650 mil dólares. De acordo com as novas autoproclamadas tarefas da Aliança, em princípio qualquer trust multinacional com uma influência suficiente para invocar os chamados «interesses vitais» dos Estados Unidos ou de outra potência aliada pode recorrer à NATO para impor a separação ou a anexação de determinado território, mudar governos legitimamente eleitos ou implantar à bomba o regime que lhe for mais conveniente.
Um tal Conceito Estratégico não deixará certamente de ser saudado entusiasticamente pelos generais que há 26 anos, de uma forma brutal e sanguinária, satisfizeram as exigências das multinacionais que então dominavam a economia chilena, como a ITT Communicationes Mundial S.A., General Electric Company, General Motors Corporation, Dow Chemikal Company, Gulf Oil Corporation, Mobil Oil Corporation, Philips Petroleum Company, Cerro Corporation, Armco Stell Corporation, Ford Motor Company, Exxon, Union Carbide Corporation, RCA Corporation, Chase Manhattan Corp...
Foi no Chile de Pinochet, assim como em inúmeras outras ditaduras militares espalhadas pelo mundo nas últimas cinco décadas, que foram lançados os pilares da actual estratégia de hegemonismo belicista e tecnológico do capitalismo global, assente na degradação do sentido da Defesa Nacional por parte das forças armadas dos países membros da Aliança e na sua redução a uma espécie de corpo expedicionário ou exército privado do capital financeiro e das multinacionais à escala planetária.
Será por isso e para evitar outras comparações e evidências que desde a cimeira de Washington nunca mais se ouviu falar desse tão sanguinário quanto «moderno» general? Ou simplesmente porque as vítimas e os danos causados na Jugoslávia pelos bombardeamentos da NATO contra sedes de partidos políticos, embaixadas, emissoras de rádio e televisão, hospitais, pontes, caminhos de ferro, refinarias... ultrapassam de longe os da ditadura militar chilena?


«Avante!» Nº 1341 - 12.Agosto.1999