Enquanto a Inglaterra se interroga
A festa da rainha-mãe continua

Por Manoel de Lencastre


A passagem do 99.º aniversário da rainha-mãe de Inglaterra, Elizabeth Angela Marguerite (nascida Elizabeth Bowes-Lyon) entusiasmou alguns sectores mais conservadores do país, mas deixou indiferente
a esmagadora maioria da população. Acontecimentos recentes de que todo o mundo teve conhecimento, fizeram baixar bastante o prestígio da monarquia inglesa e o dos Windsor. Muita gente em Inglaterra, sentindo-se diminuída por esses acontecimentos de que toda a imprensa internacional deu conta, transferira para a velha «queen-mother» as suas simpatias. Mas esta que, em 99 anos de existência, nunca trabalhou um só dia, não pode gabar-se de qualidades muito especiais. Tem vivido entre festas, banquetes, bailes – numa riqueza, numa ostentação que a Inglaterra do mundo real não pode deixar de olhar com extremas reservas.
Mas referir a data que os ingleses comuns simplesmente notaram com sorrisos de algum afecto, não pode deixar de levar-nos às circunstâncias que desta senhora fizeram uma rainha. No já distante ano de 1936 um terrível escândalo ia enegrecer os dias de quase toda a Inglaterra e faria abalar, pela primeira vez nos tempos modernos, os alicerces da monarquia. Em nada pode comparar-se a situação de então com a que vivemos hoje. Se se mencionarem as ligações do actual príncipe Carlos com Camila Chester Bowles, a mulher que ele nunca deixou de amar mesmo depois do casamento com Diana Spencer, ninguém se sentirá particularmente chocado. A nossa época é outra. Mas, em 1936, aconteceram coisas que só Shakespeare seria capaz de colocar na melhor perspectiva histórica inglesa. O sangue não correu. Mas as almas de muitos e muitas viveram dias de terrível turbulência e sofrimento. De tal forma que a senhora que acaba de fazer os seus 99 anos, grande beneficiária dos estranhos e sensacionais acontecimentos em causa, foi meter-se na cama e só de lá saiu depois dos efeitos das suas intrigantes iniciativas estarem consumados – ela era rainha e o marido era rei (George VI).


Um ano terrível

Viajemos, portanto, para o mês de Dezembro de 1936 quando a Alemanha hitleriana erguia as suas mil cabeças de ódio, o fascismo estava em Itália e a Guerra Civil espanhola começara, enquanto na URSS a épica obra da industrialização continuava. Em Londres, todos os que tinham ligações com Buckingham Palace e o castelo de Windsor, sabiam do escândalo das ligações amorosas do rei, Edward VIII com a senhora Simpson, uma americana. Naquele tempo, contudo, os editores dos principais jornais temiam profundamente fazer publicar notícias relativas à vida íntima dos «royals». O perigo de uma acção judicial por difamação era grande e, por outro lado, esses editores tinham amizades no campo da monarquia, no Partido Conservador, defendiam o Império, a supremacia da Inglaterra no mundo. Mas um dos grandes proprietários de jornais, Beaverbrook, partidário do conceito de que o rei deveria ser autorizado a casar com quem muito bem entendesse, desequilibrava a situação de conspirativo silêncio em que se vivia a crise. O povo britânico só ouvia boatos. Nada credível. Nada oficial. Mas Beaverbrook falou de mais nos Estados Unidos e no Canadá. O rei mandou-o chamar, imediatamente. O primeiro-ministro, Baldwin, exigiu-lhe explicações em privado. Só «para inglês ver» porque todos sabiam que Beaverbrook, querendo defender o rei, abriu as comportas que, brutalmente, descobriram a verdade. Aliás, o bispo de Bradford, embora de maneira muito indirecta, fez o mesmo.
Wallis Simpson tornou-se uma mulher importante logo após a morte do rei George V e a ascensão ao trono do amante, Edwardo VIII. E tudo aconteceu no mesmo ano de 1936. A fim de se minimizar os estragos resultantes das ligações do rei com uma mulher casada, arranjou-se o divórcio desta, rapidamente, no tribunal de Ipswich, a 27 de Outubro. O juiz, Mr. Justice Hawke, colocado numa orientação que mal compreendia porque não se garantiam divórcios naquela época como agora acontece, teve de aceitar a queixa da senhora Simpson que acusava o marido, Ernest Simpson, de adultério. A Inglaterra popular e romântica, então, aceitou a hipótese de ver o rei casar-se com uma divorciada – uma impossível situação entretanto, para os altos poderes da aristocracia, da Câmara dos Lordes, da Igreja Anglicana, da justiça constitucional, do Partido Conservador e do governo. Neste, um único minstro aceitava o casamento de Edward VIII com a senhora Simpson, Duff Cooper. Note-se que também Winston Churchill, então fora da equipa governamental, favorecia a posição do rei. Mas até muito povo simples e desinformado dizia que não desejava que o seu amado rei se tornasse um perigoso instrumento de desagregação nas mãos da americana divorciada. O obscurantismo e a ignorância, apesar das consequências da greve geral de 1926, ainda prevaleciam em muitos sectores.


Drama de dois irmãos

Outros trabalhavam nos bastidores. Se o rei concretizasse a decisão de abdicar no caso de não o deixarem casar com quem desejava, haveria outro soberano, o duque de York, irmão de Edward VIII e também filho de George V. A esposa deste, Elizabeth, a actual rainha-mãe, a que completou 99 anos de idade, não era das menos activas na campanha contra o próprio cunhado. Seria rainha. Diz-se que não hesitou em «pôr as balas na câmara da pistola» que deu tiro de partida para o drama supremo dos Windsor. A situação do rei era, de facto, delicada. Tinha outras amantes – Mrs. Dudley War, Lady Furness, conforme lhe apetecesse. Mas com Wallis Simpson, tudo era diferente.
Inevitavelmente, a abdicação teve lugar a 11 de Dezembro de 1936. O rei passou a duque de Windsor e casou, de facto, com quem preferia. Foi proclamado o irmão, George VI e surgiu então, aos olhos de todo o país a nossa homenageada Elizabeth que, finalmente, abandonou o leito para ser rainha. Quem é afinal, esta simpática senhora, tão venerada por alguns, mas só alguns, ingleses? Nasceu na Escócia no seio de uma grande família, a do Lord e da Lady Strathmore cujas casas e residências compreendiam Glamis, a principal, e, depois, em Londres, em Durham e no Hertfordshire. Elizabeth viveu sempre em condições de indubitável riqueza. Tinha muitos amigos e amigas. Quando se casavam, a lua-de-mel consistia em um ano de viagens. Começou a adorar os grandes bailes de salão. E de tal maneira se dedicou a essas festas que uma das suas aias acabaria por declarar: «Quando já não tinha força nas pernas, deixava-se cair no chão, às gargalhadas. Tentando levantá-la, ficava verde de horror».


Super milionária

Elizabeth, como vimos, adquiriu o título de rainha de Inglaterra por ser casada com George VI (Bertie). Mas a morte deste, em 1946, deixou-a numa situação desagradável. Teve de ceder à filha, a actual Elizabeth II, o palácio de Buckingham, o castelo de Windsor, Balmoral, Sandringham, todo o lote. A vida, na qualidade de rainha-mãe, ou rainha viúva, tornou-se cinzenta e monótona por algum tempo. Mas não muito. Depressa surgiram novas festas e novos grandes bailes. Só tinha 51 anos. Para ela, três gins triplos com Dubonnet antes do almoço e os melhores vinhos franceses durante e depois do mesmo, são o viver normal de todos os dias. Certos ingleses dizem que o gin não tem melhor propagandista do que a rainha-mãe. Champanhe – às caixas . Vive num esplendor eduardiano. Tem dúzias de criados na Clarence House. Possui cinco automóveis com chapas de matrícula personalizadas. Utiliza três chauffeurs e dois cozinheiros. Como lhe será possível viver apenas com as 643 000 libras que o Estado lhe atribui anualmente (200 000 contos)? Naturalmente, a filha lá está para subvencionar o resto. Mas a rainha-mãe, na verdade, não carece de favores financeiros.
Levanta nos bancos com a máxima liberdade. Qual seria o banco que recusaria os cheques da rainha-mãe?Já lhes deve cerca de 4 milhões. Mas, calma. Os valores que possui em casa, e os outros, os que estão ao luar, como costuma dizer-se, ascendem a mais de cem vezes o que deve. Se há pessoa no mundo que pode gastar dinheiro, ilimitadamente, essa pessoa é Elizabeth, a rainha-mãe, a que tomou o lugar que se Edward VIII não tivesse abdicado, iria para outra. Entretanto, a filha, a rainha, não tem dúvidas em declarar: «Não aceito que a mamã seja contrariada. Dê-se-lhe tudo o que pedir.»
Noventa e nove anos a viver neste estilo é coisa digna de observar-se. Por isso, os povos do actual Reino Unido cuja marcha para um futuro incerto se faz de imensos problemas voltam as costas à monarquia. E os «royals», os Windsor, que se pretendem amigos do povo mas têm medo dele, já começaram a pensar em democratizar as suas funções, os seus métodos, a sua postura. Sabem que os tempos não lhes vão de feição. Mas tentam continuar. Para eles existe, de facto, uma eternidade – a da opulência permanente e sem fim num mundo onde se morre à fome e de desespero; numa Inglaterra onde o amanhã parece tão problemático, apesar das aparências e as massas perguntam – porquê?


«Avante!» Nº 1341 - 12.Agosto.1999