A Talhe de Foice
Branqueamentos
O relatório sobre o ouro nazi, apresentado
a semana passada pela comissão presidida por Mário Soares,
concluiu não haver motivos para se considerar que o governo de
Salazar possa ser acusado de ter recebido, com conhecimento de
causa, ouro roubado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial.
Uma conclusão que suscita, no mínimo, grande perplexidade.
Acontece que a comissão presidida por Soares não andou
propriamente a desbravar um terreno virgem. Sobre a matéria
existem estudos e documentos que apontam justamente em sentido
contrário, o que levou de resto o professor universitário
suíço Jean Ziegler a considerar «incompreensíveis» as
referidas conclusões. Afirma Ziegler, em declarações à
Agência Lusa, em Genebra, que «há uma contradição evidente»
entre as conclusões da comissão e «toda a documentação em
arquivo» que «mostra que o Governo português da época e
Salazar estavam plenamente informados da origem do ouro nazi».
Ziegler garante que ««Salazar interveio junto do governo de
Berna para lhe pedir que o ouro nazi lhe fosse reexpedido,
argumentando que não o podia importar directamente por causa da
denúncia dos Aliados».
Também a historiadora norte-americana Miriam Kleiman sustenta
não haver dúvidas de que durante a II Guerra Mundial o Banco de
Portugal sabia que estava a negociar ouro roubado pela Alemanha
nazi. Citando um memorando datado de 1944 do Controlo
Norte-Americano de Fundos Estrangeiros, bem como documentos do
Departamento do Tesouro dos EUA, Kleiman afirma que Portugal
adquiriu à Alemanha ouro no valor de 45 milhões de dólares,
dos quais pelo menos «23 milhões resultaram de ouro pilhado».
Um outro documento do departamento do Tesouro norte-americano,
datado de 6 de Setembro de 1946, refere que, durante a guerra,
Portugal adquiriu 123.827 quilogramas de ouro ao Banco Central
alemão e ao Banco Nacional suíço.
Em abono da veracidade destas afirmações está o facto de a
questão do ouro ter sido negociada em Dezembro de 1946 e, já na
década de 50, Portugal ter aceitado devolver quatro toneladas de
ouro, avaliadas em cinco milhões de dólares. Uma gota de água,
segundo os investigadores, já que se estima que o valor do ouro
roubado recebido por Portugal ascenda aos 139 milhões de
dólares.
Como compreender então a conclusão apresentada pela comissão
dirigida por Soares? A resposta pode ser encontrada juntando as
pontas soltas de múltiplas ocorrências registadas nos últimos
tempos e que convergem todas para o branqueamento do regime
fascista de Salazar.
No que a Mário Soares diz respeito, manda a verdade que se diga
que o branqueamento é bem mais vasto. Veja-se, por exemplo, as
polémicas «Conversas com Mário Soares» agora retomadas pela
RTP. Figuras com profundas responsabilidades na situação de
injustiça, exploração e miséria existentes nos respectivos
países, bem como pela globalização da economia que está a
cavar o fosso entre ricos e pobres, exploradores e explorados,
são apresentados por Soares como paladinos da paz, da
democracia, da justiça social. O caso mais recente, do
Presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, o homem que
andou nas favelas do Brasil a explicar aos descamisados como é
difícil ser rico, é paradigmático. A miséria e a exploração
não podem ser negadas, mas os amigos de Soares só têm boas
intenções e hão-de passar à história que eles próprios e os
seus amigos se encarregam de escrever como devotos do bem comum.
Se os EUA decretaram o fim da História e o Papa acabou com o
Inferno, não há motivos para que Portugal não decrete que o
fascismo nunca existiu e proclame Salazar um democrata. Quanto ao
ouro, o capital saberá que fazer dele. Afinal, é essa a lógica
da economia de mercado nas sociedades de mercado. Anabela
Fino