O eclipse


É claro que não se deve olhar o sol de frente. Longe de nós desdizer as precauções ou desmentir o que de experiência sabe quem sabe - do oftalmologista ao comerciante de lunetas fumadas. Apesar da santa ignorância que alastra nesta nossa terra e da iliteracia que dizem aumentar à medida que cresce o número de ofertas de cursos superiores e de universidades privadas, o certo é que a sabedoria popular nunca deixou de alertar para os perigos das claridades excessivas. Em miúdo usei um vidro de garrafa para me defender do brilho do astro. É verdade que desse eclipse de há quase meio século me não lembro senão de um vago frio, de um caco de vidro verde e de um ruidoso entusiasmo no largo de uma aldeia, em Agosto. Toda a gente que recordo, porém, se resguardava dos furores do sol que talvez seja mais feroz quando o pretendem assim esconder dos olhos do povo que alumia. Um antigo senso comum já mandava a gente acautelar-se sem que a curiosidade sofresse.

Terá entretanto a gente perdido a antiquíssima prudência que manda pisgar de soslaio, entrever pelas fendas dos dedos, disfarçar os olhos? Será que estes novos modos populares de querer saber e requerer participação, de exigir presença e explicação dos fenómenos fizeram o povo desleixar cuidados? Parece que sim.
Pelo menos a avaliar pelo frenesim que tomou as «entidades oficiais» que zelam pela nossa saúde. A operação óculos de eclipse vai ser um sucesso retumbante, prevejo eu, à hora em que escrevo, e o leitor me dirá se assim não foi, à hora em que ler, passado o «derradeiro eclipse do milénio». Feitas as contas aos óculos a cem escudos o par, distribuídos nas farmácias como se de seringas se tratasse (ou de preservativos), o rombo vai ser de arromba. A dar uma ajuda, até o «DN» prometia um par de óculos, na edição de terça-feira. Um instrumento, como garantiu, com «homologação oficial»...

Enquanto os meios de comunicação se batem pelo sensacional acontecimento, «informando» profusamente sobre os «sinais» que o eclipse comporta, sobre o seu «significado» milenarista, socorrendo-se de bruxos e adivinhos e, mesmo, do peso cabalístico de Nostradamus, há quem desdenhe o fenómeno - vimos na televisão um responsável na comissão que coordenou a «distribuição» dos óculos, a dizer que mais valia nem sequer olhar. Que o eclipse não tinha «interesse nenhum».
Os portugueses, porém, não desarmaram. Querem ver tudo. Nem que seja o sol a apagar-se. Alguns até vão longe, para ver melhor. E havia viagens de astrónomos, programadas para a Turquia e para a Hungria. Se calhar a ver se escapavam aos óculos.

Quem não conseguiu obter um par que não se rale. Deixe passar o fenómeno. Veja na televisão. Leia a reportagem no jornal. Ouça o testemunho do vizinho. Vá à bruxa.
A gente pergunta-se, entretanto, se esta febre dos óculos não será para habituar o cidadão a ver menos. — Leandro Martins


«Avante!» Nº 1341 - 12.Agosto.1999