Um ano depois


Ao contrário do que por vezes parece poder-se supor, ver televisão continua a ser proveitoso, sob condição de uma escolha que há-de ser quase tão cuidadosa quanto a travessia de um campo minado, com perdão da imagem que é obviamente excessiva. Por isso o telespectador avisado examina com cuidado as programações anunciadas, e foi no quadro de uma escolha desse tipo que um dia destes deu nas vistas uma emissão de «Sinais do Tempo» cujo tema seria, segundo a imprensa diária, a globalização. Parecia prometedor, até porque, como se saberá, «Sinais do Tempo» é uma rubrica da TV2, isto é, condenada a uma espécie de semiconfidencialismo capaz de dar descanso a quem receie que programas excessivamente esclarecedores perturbem a passividade acrítica do «bom povo». Já não anda por cá o Salazar a achar que para os portugueses seria suficiente saber ler e escrever umas letras, fazer umas contas (e ainda assim defendendo-os de leituras malsãs, é claro), mas pululam sujeitos que secretamente pensam que o cidadão desejável é o cidadão cujos gostos televisivos se situam entre a telenovela brasileira e um qualquer «Big Show».
Na verdade, a tal emissão de «Sinais do Tempo» teve interesse, o que nem sequer constituiu excepção de espantar no contexto da rubrica, mas foi preenchida inteiramente pela transmissão de uma reportagem (de origem e autoria não indicadas, o que foi pelo menos lamentável) acerca da conferência que em Genebra assinalou o 50.º aniversário da World Trade Organization, isto é, da Organização Mundial do Comércio, uma espécie de maná de dois irmãos mais conhecidos, o FMI e o Banco Mundial. Só que a reportagem dedicou especial atenção à contestação que fez afluir a Genebra gente de vários lugares do mundo, tão numerosa e expressiva que a locução «off» afirmou que «há muito que Genebra não assistia a uma organização popular tão importante».
E, chegando-se aqui, convém registar dois aspectos curiosos, eventualmente significativos. Um deles é que tudo aquilo ocorreu há mais de um ano, em Maio de 98, e contudo só agora a reportagem nos chega, e no «segundo canal». Um outro é que não tenho a menoríssima ideia de que, na altura própria, a RTP ou qualquer das outras estações tenha dado nos seus serviços noticiosos informação adequada acerca do acontecimento.


Globalizar
o quê?

Como se compreenderá, suspeito de que essa discrição se tenha ficado a dever ao facto de a globalização ter direito a cheiro de santidade no pensamento ideológico dominante, e por isso ser quase sacrílega a sua contestação. Contudo, no decurso da reportagem, um dos seus porta-vozes explicou tudo muito bem. Disse ele que o alvo dos protestos «não é a mundialização, mas uma forma de mundialização que nos preparam e que ataca directamente os Direitos do Homem». A frase pode espantar quem se tenha acostumado a crer que tais Direitos se resumem, por cá, à possibilidade de escolher entre o engenheiro Guterres e o doutor Durão, e, no mundo, à livre opção entre a Coca e a Pepsi, mas o tal porta-voz referia-se a outras realidades. Por exemplo, àquilo que a contestação de Genebra designava por «soberania alimentar» e que é afinal o direito de os povos a não morrerem de fome por a isso serem condenados pela estreita minoria que no planeta dispõe de 90% dos recursos. Ou, num plano não tão explicitamente primário mas também fundamental, o direito a uma ordem social que assegure o trabalho e a sua remuneração condigna.
A questão põe-se, pois, em saber-se de que globalização se fala quando se diz que a globalização é inevitável, já factual e irreversível. Isto não é novidade nenhuma para quem tenha reflectido minimamente sobre o assunto, mas acontece justamente que a televisão não tem o hábito de tais reflexões ou mesmo da sua vizinhança. Há mesmo quem lance olhares suspeitosos sobre quem levanta objecções ou sequer dúvidas a propósito da sacratíssima mundialização, e para esses teria sido útil ouvir o insuspeito João Paulo II, em palavras incluídas no programa: «– É preciso globalizar a solidariedade!», proclamou ele. Depois de o ouvirmos, pode-se, é claro, perguntar pelos empenhados esforços que a Igreja por ele pastoreada tenha feito no sentido preconizado (a gente procura e só encontra o duro combate ao preservativo como prioridade mesmo em África, não é?), mas isso é outra questão. De qualquer modo, as palavras do Papa podem ser tomadas como garantia de que a reportagem tristemente órfã de autoria não era um acto de subversão. Apesar disso, demorou a chegar. Resta que quem a tenha visto se congratule pela sorte que teve, mesmo um ano depois. — Correia da Fonseca


«Avante!» Nº 1341 - 12.Agosto.1999