Um Vietname latino-americano no horizonte
EUA preparam
intervenção na Colômbia

Por Miguel Urbano Rodrigues



Uma nova intervenção imperial pode produzir-se em breve. O cenário seria a América Latina, o alvo a Colômbia e o agressor os EUA, desta vez sem o disfarce da NATO.
O plano foi elaborado com antecedência. Somente lhe faltam os acabamentos, embora alguns sejam fundamentais. Mas a sua concretização depende de factores imprevisíveis. Pode ser executado, adiado ou mesmo anulado.
O projecto é obviamente inseparável da ânsia de poder universal e perpétuo que determina hoje o rumo da política externa dos EUA.

Como já é tradicional nestas situações uma campanha mediática intensa foi lançada oportunamente com o objectivo de persuadir a opinião pública mundial de que a defesa da democracia, da paz e de liberdades fundamentais pode tornar indispensável e necessária a intervenção dos EUA na pátria de Garcia Marquez. A fórmula não seria original; apenas uma adaptação da já utilizada nas semanas que precederam as intervenções no Golfo, na Somália, na Bósnia e a guerra contra a Jugoslávia.
Subitamente, e sem justificação aceitável, a Colômbia passou a aparecer com frequência suspeita nas manchetes dos telejornais e dos grandes diários. Editoriais, reportagens, artigos começaram a projectar das Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia (FARC) a imagem de uma guerrilha demoníaca de bandoleiros e assassinos, intimamente ligada aos cartéis da droga.
Foi o primeiro passo. A segunda mensagem estabelecia a ponte entre o combate sem tréguas à guerrilha e a preservação da democracia na Colômbia. A terceira insistia na fragilidade do exército da Colômbia para enfrentar vitoriosamente uma guerrilha «poderosamente armada, cuja expansão configura já uma ameaça para todo o Continente». A quarta, finalmente, empurrava para a conclusão de que somente os EUA, nação predestinada para salvar a humanidade, com o apoio de estados democráticos da América do Sul, estão em condições de conjurar o perigo representado pelas FARC.
Esse é o folhetim envenenado que o sistema mediático difunde pelo mundo, confiante na velha máxima goebelsiana de que uma mentira, à força de repetida, acaba por ser recebida como verdade.

As manobras e intrigas
do general Mc Caffrey

Três altas personalidades norte-americanas visitaram recentemente a Colômbia incumbidas de missões delicadas. A mais destacada foi o subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, Thomas Pickering. Clinton mandou-o a Bogotá como «enviado especial» para analisar a situação no país. Outra foi o general CharlesWilhem, chefe do Comando Sul, cujo papel em diferentes intervenções militares no Continente é sobejamente conhecido.
A terceira, o general Mc Caffrey, conhecido pela alcunha de czar antidroga pelo trabalho desenvolvido no comando da Drug Enforcement Agency - a famosa DEA (cujas íntimas ligações com a CIA foram recentemente tornadas públicas) desempenhou um papel importante na difusão da mentira necessária: a ameaça colombiana.
Clinton enviou-o a Caracas e Bogotá com essa missão específica. Mas as coisas correram mal. Mc Caffrey subestimou Hugo Chavez. Acreditou poder convencer o presidente da Venezuela a aceitar a proposta da instalação de bases aéreas norte-americanas no país para, supostamente, imprimir maior eficácia ao combate ao narcotráfico. Escutou um rotundo Não! Chavez informou-o de que a Venezuela repudia todas as formas de intervenção militar, directas ou indirectas, no Continente.
Em Bogotá a missão também falhou. Mc Caffrey manifestou ali a esperança de que os EUA possam ajudar o governo de Andres Pastrana «nos desafios relacionados com a busca da paz, no aspecto económico e na cooperação antidrogas». O seu temperamento belicoso desviou-o porém para terrenos delicados. Deu opiniões críticas sobre o diálogo de Pastrana com a guerrilha. No seu entender, a paz passa não por conversações mas pelo esmagamento das FARC pelo exército. Obviamente, os generais colombianos aplaudiram, tal como os bandos paramilitares de Castaño.
No regresso, o czar, sempre impulsivo, acumulou erros. Numa conferência de imprensa afirmou ter provas de que guerrilheiros das FARC estavam já operando nas selvas do Brasil, do Equador, da Venezuela e do Peru. Não apresentou, entretanto, uma só prova.
O impacte dessas alarmantes declarações foi grande e imediato. O governo brasileiro sentiu a necessidade de desmentir o general.
Em Washington, Clinton não conseguiu disfarçar o seu mal estar.
No dia 21 de Julho, o presidente havia afirmado que o conflito colombiano se tornou já «uma questão de segurança nacional» para os EUA.
O czar, por inábil, contribuiu para que as pontas do véu que encobria a conspiração começassem a ser levantadas.


O plano da CIA

Em Buenos Aires, o diário La Nación informou na edição de 22 de Julho que o governo dos EUA sondara a Argentina sobre a possibilidade do lançamento de «uma iniciativa internacional para a Paz na Colômbia», iniciativa a que Washington daria a sua adesão. O presidente Menem não comentou, mas no dia 26 declarou que o seu país estava disposto a enviar tropas para a Colômbia se o governo de Pastrana lhe dirigisse um apelo nesse sentido. O vice-ministro dos Estrangeiros, Andres Cisneros, deixou entrever as hesitações argentinas ao esclarecer que o seu governo não se envolveria no problema colombiano «sem antes ouvir a opinião dos nossos vizinhos e sócios na Região», ou seja, os demais estados do Merco Sul.
Para a Administração Clinton, as esperanças de montar na América do Sul uma espécie de coligação que pudesse repetir no Hemisfério a função que os aliados da NATO cumpriram na Europa na agressão contra a Jugoslávia começaram a desvanecer-se quando Fernando Henrique Cardoso, de visita ao Peru, declarou em Lima que somente apoiaria qualquer tipo de cooperação internacional com a Colômbia se esta não implicasse «formas de intervenção nos seus assuntos internos». E a 27 de Julho, o ministro das Relações Exteriores, Luís Filipe Lampreia, clarificou as palavras de FHC ao sublinhar que «o Brasil não está de acordo com intervenções militares no Continente».
Em Lima, dois dias antes, o diário «República» num artigo de grande repercussão fizera revelações que confirmaram a gravidade e a complexidade que o plano conspirativo anti-colombiano assumira. Segundo o jornal, a CIA tinha apresentado em Junho a Vladimiro Montesinos, o assessor especial de Alberto Fujimori, um projecto alternativo, prevendo o malogro das negociações de paz entre o Governo Pastrana e as FARC.
Estranhíssimo plano: traçava as linhas gerais da intervenção simultânea dos exércitos do Peru e do Equador na luta contra as FARC nas regiões próximas da fronteira, em operações coordenadas com o exército colombiano. Segundo a revista «Brecha», de Montevideu, que publicou sobre o conjunto enovelado da conspiração um bem documentado artigo, «os EUA participariam com abundante material logístico, homens e armas de última tecnologia».
Os desmentidos de Washington foram, além de inconvincentes, ridículos. Em Bogotá, o diário El Espectador revelou na sua edição de 27 de Julho que o avião norte-americano que caiu no Sul da Colômbia participava numa missão de espionagem. O aparelho, um DCH-7, tinha uma tripulação militar de 7 homens e estava equipado com material de alta tecnologia. Que faziam esses oficiais e soldados dos EUA sobrevoando uma zona totalmente controlada pelas FARC num voo secreto? Washington não rompeu o silêncio.
As FARC desmentiram qualquer participação sua na queda do avião, mas num comunicado difundido pela Internet advertiram Washington de que «se os EUA ampliarem a sua intervenção na Colômbia as suas tropas regressarão ao país com trágicos resultados, com mortos e feridos». No mesmo comunicado as FARC informavam que em caso de intervenção, «todos os assessores norte-americanos e as instalações militares dos EUA serão considerados objectivos militares».


A pergunta de Fidel

Os factos são suficientemente claros. Sobre a Colômbia pende a ameaça de uma brutal intervenção militar dos EUA. Somente as dificuldades encontradas por Washington para formar uma coligação fantasma que desse cobertura política ao projecto forçaram a Casa Branca a desistir da concretização imediata do plano de agressão.
Mas o peso do fantasma da intervenção é tamanho que ninguém reagiu com surpresa às perguntas que Fidel Castro dirigiu no Brasil aos governantes europeus durante o Encontro que ali os levou recentemente. Mostraram-se quase todos perturbados quando solicitados a pronunciar-se sobre as consequências do eventual bombardeamento pelos EUA de um país sul-americano, à sombra do novo conceito estratégico da NATO.
Aparentemente uma intervenção dos EUA na Colômbia seria uma insensatez política e militar. Washington não somente não poderia contar com o apoio dos seus aliados europeus como desencadearia uma vaga de indignação de dimensões continentais na América Latina, com efeitos desastrosos para a imagem dos EUA no hemisfério.
Os militares mais lúcidos do Pentágono desaprovam, aliás, a iniciativa ao analisar a hipótese da intervenção numa perspectiva estritamente militar. A situação seria totalmente diferente daquelas que os EUA enfrentaram na Bósnia e na Jugoslávia. O governo de Bogotá é um aliado firme de Washington. Cabe perguntar que objectivos iriam bombardear os aviões da USAF? A guerrilha das FARC está hoje dessiminada por todo o país, embora disponha de bastiões onde controla a totalidade do território, como ocorre na Zona desmilitarizada de 42 000 km2, onde decorreu a primeira fase das negociações de paz com o governo de Pastrana.
Na Colômbia, os EUA encontrariam um inimigo invisível, uma guerrilha com décadas de experiência, e um espírito de luta inquebrantável. Os 15.000 combatentes das FARC seriam um adversário formidável para uma tropa de intervenção norte-americana. Se Washington evitou no Kosovo envolver-se em operações no terreno contra o exército jugoslavo, a lógica mais elementar desaconselharia agora o confronto militar directo com as FARC.
A lógica, entretanto, raramente pesou nas grandes decisões que precederam as agressões norte-americanas a diferentes países. É preocupante - apenas um exemplo - a insistência com que os grandes media dos EUA começaram a satanizar a figura de Manuel Marulanda, o comandante supremo das FARC. Tentam repetir uma táctica utilizada com êxito na demonização de personalidades como Kadafi, Saddam Hussein e, ultimamente Milosevic. Na tentativa de criar bom ambiente à intervenção cometem neste caso o enorme erro de apresentarem como bandoleiro, assassino e aliado de narcotraficantes um homem que ganhou pela sua trajectória, ao longo de quatro décadas, na direcção de uma guerrilha invencível, o perfil de um herói. A campanha contra «Tiro Fijo», como é conhecido Marulanda, montada nos EUA, está a produzir resultados opostos ao visado. A mascara de Satã não se ajusta ao revolucionário que emerge na América Latina como personagem quase mítica.
O mais elementar bom senso desaconselharia, repito, uma intervenção militar norte-americana na Colômbia. O traço dominante na elaboração da política externa dos EUA não é, entretanto, o bom senso, mas sim uma irracionalidade crescente e agressiva. Daí a legitimidade do temor de que o sistema de poder que hoje põe e dispõe na grande república norte-americana envolva a América Latina nas labaredas de uma nova tragédia quando ainda não se extinguiram as chamas do braseiro jugoslavo. É um irracionalismo aparentado com o do Reich nazi e não a lógica cartesiana que funciona como motor da insaciável ambição imperial dos EUA.


«Avante!» Nº 1344 - 2.Setembro.1999