Barrancos
para além dos toiros
Como bem se sabe, Barrancos tem sido muito
falada. Eminentes juristas e equiparados que nunca deram mínimos
sinais de preocupação pelo direito dos cidadãos ao trabalho,
previsto em leis fundamentais, mostraram-se muito ralados por
poder vir a ser recusado a uns bois o direito ao matadouro. Por
seu lado, as TVs falaram mais de Barrancos em meia dúzia
de dias que em todo o resto do ano. Chegou a coisa ao ponto de o
ministro Jorge Coelho se mostrar perante as câmaras vivamente
preocupado, não fosse Barrancos roubar protagonismo a Timor nos
passados dias 30 e 31. Não fosse Timor uma situação de
tragédia e teria sido, sem dúvida, caso para chacota.
Porém, na própria semana que antecedeu as festas de Barrancos,
ocorreu qualquer coisa de inesperado: Barrancos foi falada, sim,
mas não por causa dos seus touros. Foi numa emissão de «Sinais
do Tempo», da TV2, no contexto de um trabalho sobre a Guerra
Civil de Espanha assinado por Carlos Santos Pereira. Aí se disse
que, mesmo mais de sessenta anos depois, a memória dessa guerra,
e mais exactamente dos crimes atrozes cometidos pelos franquistas
com a cumplicidade activa do fascismo português, persiste entre
os barranquenhos, junto dos quais um trabalho de reportagem
recolheu reminiscências muito vivas. É que, ao contrário do
que as TVs quase sugeriram, embora decerto na mais perfeita
inocência, Barrancos não é apenas uma festa com toiros de
morte uma vez em cada ano: é solidariedade, sentido de justiça,
cidadania. E, sempre que as circunstâncias o justificam,
indignação pela crónica marginalização pelo chamado poder
central. Quanto a isto, saltam-me à memória palavras de um
velho fado: «
mais marradas dá a fome/do que um toiro
tresmalhado».
Não apenas na raia
Entenda-se: o centro
do programa de Carlos Santos Pereira não foi Barrancos, mas sim
a Guerra Civil espanhola, e de resto Barrancos foi citada no
quadro da perenidade da guerra na lembrança das populações
portuguesas da raia. Em todo o caso, parece-me que a informação
prestada peca por defeito: embora os portugueses da fronteira, e
mais ainda talvez os da raia alentejana, tenham sentido com maior
proximidade a tragédia espanhola, a memória do conflito e o
sentido de fraternidade com os republicanos espanhóis de 36
mantêm-se vivos em democratas do país inteiro. É que a
resistência à barbárie franquista era então uma luta de todos
os antifascistas portugueses, como de resto este «Sinais do
Tempo» não deixou de registar quando recolheu palavras de um
ex-tarrafalista. Num certo sentido, poder-se-ia dizer que todos
os democratas do nosso país eram «brigadistas» no sentimento,
e muitos deles o foram de facto na ajuda concreta aos defensores
da República mesmo sem terem cruzado a fronteira. Entre esses,
estiveram sem dúvida muitos de Barrancos.
Os momentos em que foram referidos a Brigada Internacional e os
35 mil brigadistas que a integraram foram exactamente dos
melhores de todo o trabalho de Santos Pereira pela carga
emocional que sempre acompanha essa evocação, como é justo e
inevitável. De resto, todo o programa se revestiu de muito
interesse, é claro que não diminuído pela circunstância de a
Guerra Civil Espanhola já ter sido tema de várias outras
emissões, creio que sempre na TV 2 e não decerto por acaso. O
crime franquista teve entre nós, durante várias décadas, uma
intensa cobertura de falsificações e invencionices cujos
efeitos tóxicos ainda perduram, pelo que seria leviano supor que
já não vale a pena voltar ao assunto. Para lá disto, há ainda
as pequenas e já inconscientes distorções que desfocam o claro
entendimento do que se passou. Por exemplo: o já lugar-comum de
caracterizar a Guerra Civil como «um ensaio para a Segunda
Guerra Mundial», quando muito mais exacto e importante será
olhá-la como um episódio extremo da luta de classes na Europa.
Apesar da qualidade do programa, não quero deixar de registar um
pormenor que me desconcertou: a citação do «acordo
Molotov-Ribbentrop», referido no âmbito do ano de 38 como tendo
sido um dos factores de fragilização da defesa da República.
Creio que a alusão só pode ter sido ao pacto germano-soviético
na verdade assinado em Agosto de 39, já com Franco vitorioso, e
cuja motivação e sentido são cronicamente falsificados pelo
anticomunismo mais crapuloso. Mas, repito, este «Sinais do
Tempo» foi um precioso e hoje raro momento de televisão. Com o
mérito acrescido de vir lembrar-nos, naqueles dias em que as
TVs quase proclamavam que Barrancos é só uma questão de
matar ou não quatro toiros, a vila tem outras tradições, outra
densidade, gente humanamente mais rica do que talvez desejem que
imaginemos. E que, sem que nos tenhamos de envergonhar pelo seu
apego às festas de Agosto, nos dá ainda outros motivos para que
dela nos orgulhemos. Correia da Fonseca