Ainda o 60º aniversário
do início de uma catástrofe

Era a guerra

Por Manoel de Lencastre


Na situação indecisa que se viveu desde o martírio da Polónia até ao ataque nazi na frente ocidental (10-05-1940), a constituição do gabinete de guerra em Londres, nesse mesmo dia, deu ao mundo, ansioso, a mensagem de que a Grã-Bretanha estava disposta a lutar. Os trabalhistas recusaram fazer parte desse gabinete se fosse chefiado por Neville Chamberlain, mas aceitaram trabalhar com Winston Churchill.
Este, afirmaria:
«Quando se fizer a história destes dias, Neville Chamberlain não sairá bem visto. Sei-o, perfeitamente, porque serei eu quem vai escrevê-la.»

A entrada do exército britânico na referida frente ocidental (Holanda, Bélgica, França) forneceu uma esperança – a de que a invasão alemã pudesse ser sustida e a França defendida. Total ilusão. A 13 de Maio de 1940, o governo holandês mudava-se para Londres. A 15, o seu exército entregava-se. A Europa, o mundo, estupefactos perante o carácter fulminante do avanço da «Wehrmacht», a rapidez dos carros de combate, tropas paraquedistas surgindo à rectaguarda de posições tidas como inacessíveis, ataques aéreos mortíferos. As cidades começavam a transformar-se em mares de escombros e a normalidade na vida dos países e dos povos entrava em completa ruptura.

Neutralidade portuguesa...

Em Portugal, sob a cobertura de uma suspeita e desonrosa neutralidade, as opiniões dividiam-se. Não faltavam admiradores à capacidade bélica dos nazis. O tradicional ressentimento nacional contra os ingleses criava simpatizantes no campo germanófilo. Mas, na generalidade, a simpatia dos portugueses ia para os aliados, ignorando-se a verdade quanto à posição da URSS. Nos cafés de Lisboa, porém, os ostentosos partidários de Adolf Hitler viviam tardes e manhãs de inchada glória lendo os jornais e tomando cafés sucessivos a que não se dava, ainda, o nome de «bicas», posto que as máquinas italianas de fazê-las estavam a décadas de distância. Era intensa a actividade de informadores espiões.
Suspeitava-se de que se os nazis invadissem a Península Ibérica, após o esmagamento da França, e ignorando completamente o governo de Salazar, certas empresas que prosperavam no nosso país desempenhariam um considerável papel de apoio logístico às tropas invasoras. Por exemplo: fábricas de cortiça alemãs da zona do Barreiro seriam utilizadas como centros de concentração de presos de onde sairiam escravos para os campos de trabalhos forçados na Alemanha. Tudo estava preparado.
Balões de barragem enchiam o céu de Lisboa. às vidraças das janelas aplicavam-se tiras de papel para que resistissem. O governo, fornecedor de produtos alimentares aos alemães, incitava o povo português a montar aviários e coelheiras em casa. Nas varandas dos prédios passaram a acumular-se galinheiros. O desaparecimento dos géneros alimentícios mais regulares no mercado sentiu-se logo nos primeiros dias de conflito. Uma garrafa de azeite valia mil vezes o seu preço. Havia bichas à porta das carvoarias. Petróleo era um produto impossível de obter. O carvão rareava. Comprava-se carqueja, formavam-se longas bichas para o açúcar, para o sabão. Um organismo chamado Intendência Geral dos Abastecimentos nada podia fazer contra os candongueiros.

A emissora central de Moscovo

Era atroz, evidentemente, a vida dos povos em guerra. Mas a que se vivia em países neutrais, como o nosso, além de pobre era indecisa, duvidosa. Qualquer português que se sentisse digno desse nome e de si próprio sabia que a neutralidade do nosso país não deixava de reflectir a nossa incompetência, a cobardia e o oportunismo do governo. Quando os nazis invadiram a URSS, notou-se uma crescente mobilização da opinião nacional. Percebeu-se melhor o jogo das grandes potências envolvidas no cataclismo. E os portugueses mais convictos, no segredo das suas casas e em plena noite, agarravam-se aos aparelhos de rádio, nervosamente, até que surgia, como se viesse da eternidade, o tão emocionadamente aguardado sinal – «Estão ouvindo a Emissora Central de Moscovo em trasmissão diária para Portugal e colónias.»
Naturalmente, os serviços de escuta e censura assaltavam as frequências utilizadas em Moscovo produzindo ruídos que dissipassem ou enfraquecessen o som e as vozes que pretendíamos ouvir. Mas o emissor soviético era muito mais forte e voltava sempre – «Estão ouvindo a Emissora Central de Moscovo...»
Definitivamente, a voz da URSS era a voz da liberdade, uma liberdade que os ouvintes da BBC, por exemplo, não percebiam. Para estes, democracia era eleições e contagem de votos. Nada significava, nessa óptica, que os operários da Sociedade Geral também quisessem a sua democracia expressa em salários que os libertassem da escravatura da entidade patronal. Quem escutava a Rádio de Moscovo sabia tudo sobre a guerra. E ganhava uma causa pela qual passaria a combater – a mais justa de todas as causas.
Estavam para viver-se, porém, as horas mais dolorosas a que a espantosa catástrofe, alargada, já, a todo o mundo, acabaria por sujeitar-nos. No decorrer da segunda fase da batalha de Moscovo (15.1.1941– 1.12.1941) forças do Grupo de Exércitos Centro (nazi) chegaram, de facto, às portas da capital soviética. Então, nos cafés do Rossio (Nacional, Chave d'Ouro, Portugal, Nicola) discutia-se contraditórias informações. De repente, agentes alemães entrando aparatosamenbte em todos eles: «Já lá estamos! Os tanques do Guderian entraram em Moscovo!» Tinha sido a própria rádio germânica que havia difundido estas aterradoras notícias. Para quem sofria pela causa dos soviéticos ruíam as melhores esperanças. Mas, à noite, a Emissora Central de Moscovo anunciava: «Hoje, dia 1 de Agosto de 1941, forças nazis conseguiram abrir uma brecha entre os nossos 5.º e 33.º exércitos avançando na estrada de Kubinka. Mas foram vencidas em Akulovo onde mais de 300 tanques ficaram destruídos. Outras forças blindadas inimigas tentaram ultrapassar Golitsino mas foram, igualmente, destruídas. Na capital da URSS a bandeira vermelha continua a flutuar...»
Ficámos na certeza de que depois das inecreditáveis batalhas travadas nos sectores de Volokolamsk, Mozaisk, Maloyaroslavcts, Kaluga, que prenunciavam a vitória final do Exército Vermelho, a URSS daria uma lição enorme aos que tinham pretendido destruí-la. A Humanidade, venceria!

_____


Festejar em Lisboa (estranhamente...)
A vitória de Moscovo


A verdade ficou à vista. As mentiras dos espiões nazis que distribuíam a revista Sinal por toda a Lisboa ficaram expostas como aquilo que eram, efectivamente – mentiras! Nos dias seguintes, os germanófilos emudeceram. Tinham de reconhecer que, não tendo conseguido chegar a Moscovo, perderiam a guerra, eventualmente. O facto de se terem visto forçados a abandonar o plano de invasão da Grã-Bretanha já constituía, em si, uma derrota.
Mas como celebrar em Lisboa a vitória do Exército Vermelho em Moscovo? Tarefa impossível. Alguns, contudo, conseguiam fazê-lo, muito à sua maneira. Vejamos como.
No último andar do «Chave d'Ouro», no coração da famosa Praça D. Pedro IV, organizavam-se chás dançantes todos os dias, às cinco da tarde. Uma pequena orquestra atacava no tango. Havia um trompetista, também, que experimentava na música de «jazz». Raparigas sentadas às mesas, fingiam, fingiam em tudo. Outras, porém, não fingiam em nada. Pelo contrário, revelavam-se. Eram refugiadas judias em trânsito para os Estados Unidos ou para Países da América do Sul. Encontravam-se no centro de horríveis dramas pessoais e tinham conseguido sair da Alemanha ou da França onde a caça aos judeus se intensificava. Enquanto não chegavam a Lisboa os navios que as transportariam aos seus destinos, procuravam aproveitar o tempo naquilo que consideravam «a bit of a good time in Lisbon».
Não eram muitos os jovens lisboetas que frequentavam os chás dançantes das cinco. Mas aparecia lá um cujo interesse nas peripécias da guerra se tornara visível. Na tarde de 2 de Dezembro, porém, a sua alegria era transbordante. Ninguém sabia porquê. Aproximou-se de uma das raparigas judias e perguntou: «Shall we dance?» Ela, toda sorrisos, ergueu-se, deixou o saquinho de mão sobre uma cadeira, ajeitou o cabelo, desfez o cigarro no cinzeiro e entregou-se-lhe. «Você parece muito satisfeito», disse. Enrolaram-se ao ritmo de «La Comparsita» na pista de dança. Outros pares juntaram-se-lhes. Empregados de mesa, encostados a uma parede, assistiam. Mas a rapariga, que era checa, insistiu: «Porque parece tão satisfeito?»
Ele, então, rodopiando, respondeu: «É que o mundo, filha, o mundo vai começar outra vez!»
Era verdade. De mentiras diversas, o mundo recomeçava naquele dia. Para ela que era checa. Para ele que era português. Para todos. Para todos!

O fim da França vacilante

A rapidez do avanço germânico através da Holanda e da Bélgica e o ataque directo à França tornou inaplicáveis os planos defensivos do general Gamelin. Duas divisões de tanques (Guderian) passaram o Meuse. Sédan ficou para trás a 15 de Maio de 1940 e, cinco dias depois, Amiens foi capturada. Em fuga permanente, o exército britânico convergia pra Dunquerque perante a passividade dos nazis e, de 28 de Maio a 4 de Junho, realizava a célebre, dramática, quase patética evacuação. Enquanto isso, a França perdia a batalha de Lille.
Na desorienteção geral, o governo francês nomeava o reaccionário general Weygand como generalíssimo dos exércitos e Pétain, que era embaixador em Madrid, aparecia como ministro de Estado e vice-presidente do Conselho. Pétain tinha vencido em Verdum, na Primeira Guerra Mundial, mas era agora um velho marechal direitista manipulado pelos meios fascizantes que se preparavam para chegar ao poder.
A 28 de Maio, com a «débacle» à vista, é Charles de Gaulle, promovido a general de brigada temporariamente, quem dá luta aos invasores em Abbreville, no comando de uma divisão blindada. Mas, à rectaguarda, Pétain e Weygand só pensavam na capitulação da França. Imaginavam que a «normalidade» seria restabelecida se o país resvalasse para o fascismo e, aliado à Alemanha hitleriana, vendesse a alma ao diabo.
A 2 de Junho, as reservas do Banco de França são transferidas para Casablanca e para o Canadá. Paul Reymond chama De Gaulle para o cargo de sub-secretário da Defesa. L'Humanité clandestino apela à união de todas as forças nacionais e ao desmascaramento e isolamento dos agentes do inimigo infiltrados em todos os escalões do poder do Estado. A 6, o PCF, também já na clandestinidade, propõe a defesa de Paris transformando o conflito numa guerra nacional pela independência e pela liberdade. Mas, a 10, o governo decide-se pela evacuação e muda-se para Tours.


Os nazis entram em Paris

A população parisiense, sentindo-se desorientada e abandonada, começa a abandonar, também, a capital pelas portas de Orléans e de Italie. Não há meios que não se utilizem para transportar haveres pessoais. As estradas enchem-se de milhares de fugitivos. Surgem «Stukas» nos ares, cuja metralha rasga, dilacera e mata. Aos olhos do mundo, a França enlouquecera. Em vez de se unir para combater Hitler, dividiu-se e desagregou-se queixando-se o governo de que o inimigo era o PCF e a URSS.
A 14 de Junho, a «Wehrmacht» entra em Paris que, no dia anterior, fora declarada cidade aberta. O governo francês muda-se, de novo, para Bordéus. Paul Reynaud demite-se e cabe a Pétain formar outra equipa ministerial. Declara o cessar fogo, pela rádio, a 17. No dia seguinte, começa negociações com a potência ocupante para a concretização do tão desejado armistício. De Gaulle consegue fugir para Londres e, daí, apela aos patriotas propondo-lhes que se lhe juntem. Mais tarde, diria: «La France a perdu une bataille. La France n'a pas perdu la guerre.» (AFrança perdeu uma batalha. A França não perdeu a guerra).
A convenção do armistício foi assinada por Keitel, do lado alemão, e pelo general Huntziger, em nome da França, às 23.50 horas de 22 de Junho. Em Londres, Churchill afirma a sua dor, a sua perplexidade perante a aceitação pela França das condições impostas pelos nazis. A opinião pública francesa está completamente cloroformizada. Entram no governo de Pétain (23.06.1940) personalidades desacreditadas como Adrien Marquet e Pierre Laval. Este foi nomeado vice-presidente do Conselho, à sombra de Camille Chautemps que, mais tarde, viria a colaborar, assiduamente, no Diário de Notícias dirigido pelo fascista português Augusto de Castro.
Pétain, finalmente, declara que os valores básicos do «novo» Estado francês de Vichy são: Deus, Pátria e Família. Mas os tempos velozes que estão a viver-se revelam em toda a França uma atmosfera de miséria, fome e repressão. O país de 1789 está dilacerado em 1940. Vive, sofre, interroga-se, em duas zonas.


«Avante!» Nº 1349 - 7.Outubro.1999