A TALHE DE FOICE
O dia seguinte


A campanha eleitoral está a chegar ao fim e todos se preparam para queimar os últimos cartuchos, fazendo jus à convicção nacional de que até ao lavar dos cestos é vindima. No sábado, dia em que é suposto o eleitorado meditar nas propostas que lhe foram apresentadas para decidir o sentido do seu voto, os guerreiros do asfalto que nos últimos dias percorreram o país armados em vendedores de promessas vão enfim descansar, tratar das gargantas enrouquecidas e preparar os discursos para o dia seguinte. Com meditação ou nem tanto os eleitores irão às urnas no domingo e preparar-se, por sua vez, para o dia seguinte.

Neste ritual que já passou a fazer parte das sociedades ditas democráticas há qualquer coisa que é simultaneamente exaltante e estranha. Existe, por um lado, o sentido da festa, entendida como participação colectiva num acto em que cada um tem o direito de expressar livremente a sua opinião sobre o rumo a seguir. É a afirmação do livre arbítrio, do direito de seres livres decidirem em liberdade em quem vão delegar o poder que vai intervir nos destinos do país. Do somatório final dessa escolha depende o dia seguinte e é aí que muitas vezes a exaltação cede lugar à estranheza. É quando se percebe que uma escolha, para ser livre, exige muito mais do que o direito de escolher, quando se toma consciência de que não são nem podem ser livres os que não dispõem dos meios indispensáveis para fazer conscientemente as suas escolhas.
Está ainda bem presente na memória de todos o dia em que Portugal acordou num dia seguinte a um domingo eleitoral com uma maioria absoluta que curiosamente já ninguém desejava e, mais curiosamente, para que ninguém admitia ter contribuído. Os resultados são conhecidos.
O fenómeno não é exclusivo nacional. Ainda esta semana um país tão pretensamente evoluído como a Áustria despertou para o pesadelo de ter mais de um milhão de pessoas a transformarem um partido de extrema-direita, neo-nazi, na segunda força nacional. Os resultados ainda não são definitivos mas, a confirmarem-se, esse partido vai ter inevitavelmente um papel decisivo no futuro imediato do país, por mais que os que lhe deram os votos estejam longe de se considerarem nazis.
Não se trata aqui, obviamente, de comparar o que não é comparável, ou seja, as ideologias das forças políticas em presença nesta disputa eleitoral com as existentes noutros países. Trata-se, isso sim, de sublinhar a importância e a responsabilidade inerentes à liberdade de voto, essa liberdade que para o ser exige ponderação e esclarecimento.
É porque o dia seguinte pode ser decisivo que é tão importante o período de reflexão. Uma reflexão serena, desapaixonada, pesando prós e contras, separando o trigo do joio, ignorando promessas demagógicas e atendendo não às palavras mas aos actos. Os que apostam na divisão e mentem deliberadamente no afã de ganhar protagonismo só favorecem os que dizem combater. Os que nada fizeram no passado e agora tudo prometem não podem merecer crédito. Como não o merecem os que ontem vociferaram contra o poder absoluto e hoje o reclamam agitando o fantasma da instabilidade inexistente. O poder absoluto corrompe absolutamente, e os portugueses sabem disso. A divisão serve sempre aos que querem reinar, e os portugueses não o ignoram.
Votar tem de ser um acto consciente. Votemos pois com responsabilidade. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1349 - 7.Outubro.1999