O «perdão» da
dívida
Farisaísmo,
hipocrisia, cinismo
Por Sérgio Ribeiro
Bill Clinton anunciou, com pompa, circunstância e grande impacto mediático, que os Estados Unidos iriam perdoar a totalidade das dívidas de 36 países dos ditos pobres e muito endividados.
Com C de cínicos se escreve Clinton e outros nomes e apelidos que pela letra C começam. Além de capitalismo, claro.
Face à dimensão do
problema da dívida a que já houve quem chamasse bomba ao
retardador e à pressão da chamada opinião pública,
expressa por ONGs, mas também por partidos políticos, há anos
que se debate a redução e, até, a anulação das dívidas dos
«países pobres».
Pois, a abrir a assembleia anual do FMI/Banco Mundial (BM),
encerrada já este mês e a quarta desde que a questão é
considerada por tais paragens, Bill Clinton anunciou, com pompa,
circunstância e grande impacto mediático, que os Estados Unidos
iriam perdoar a totalidade das dívidas de 36 países dos ditos
pobres e muito endividados.
Esse «perdão» seria financiado por um crédito de mil milhões
de dólares, como veio afirmar o secretário de Estado do Tesouro
dos EUA, apesar do valor facial das dívidas a «perdoar» ser
seis vezes mais elevado. Assim é por o valor real da dívida
desses países aos EUA ser substancialmente inferior ao seu valor
facial dada a reduzida probabilidade de pagamento.
Isto é, "perdoa-se" quase só o que de antemão se
sabe que não irá ser pago...
Com H de hipocrisia se escreve a sigla HIPC (Heavily Indebted Poor Countries) como é conhecida a iniciativa que começou a ser congeminada em 1996.
Ora o generoso e
tão publicitado gesto de Bill Clinton é irrisório se o
confrontarmos com outros números. Na verdade, a HIPC tomou
expressão na assembleia anual FMI/BM através de um «programa
de perdão de dívidas» e na sequência de decisão do G7 de
Junho passado, em que esses 7-grandes e ricos-7 (Alemanha,
Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido) se
comprometeram a «perdoar» 90% das dívidas dos «países
pobres».
O "programa", à partida, atingirá 40 países e
deverá ultrapassar 70 milhares de milhões de dólares. O que
quer dizer que o gesto de Clinton vale adicionar 100 a um total
de 70.000... isto é, 0,14%! E tão-só como compromisso, tendo
já outros Estados, grandes e/ou ricos mas não tão ricos nem
tão grandes como os EUA, contribuído efectivamente para a
realização do Fundo da HIPC.
Dir-se-á que vale o significado do gesto e o efeito
multiplicador que possa ter. Até porque Tony Blair - ah! esta
dupla Bill & Tony...- se mostrou logo disposto a seguir o
exemplar «gesto de liderança mundial». No entanto, a
lembrança de que, em 1993, a dívida total do «mundo pobre»
era estimada em 1660 milhares de milhões - pelo que não será
excessiva, hoje, a referência de 2 biliões de dólares -, ajuda
a melhor dimensionar quão infinitesimal foi o gesto, e como
seria estulto dar-lhe tanto relevo se não fossem tão grandes o
cinismo e a hipocrisia.
Com F de fariseus se escreve FMI-BM e alguns apelidos e nomes próprios de comentadores desta questão e do gesto de Clinton.
Mas o mais
importante nem é o tamanho dos números.
A dívida não apareceu e não cresceu por acaso. Tem, como
sempre teve, um papel estratégico no capitalismo. Esse papel
ganhou relevância quando as relações coloniais se começaram a
desmoronar e se criou e estabeleceu a dívida por via de uma
invasão tecnológica (quase sempre inapropriada e não menos
vezes obsoleta), financiada pela «ajuda ao desenvolvimento» dos
novos países (politicamente) independentes; a segunda fase foi a
da subida em flecha dos seus montantes, e correspondente
serviço, com investimentos maciços e arriscados, e reciclagem
de capitais especulativos flutuantes; a terceira fase está
associada ao neo-liberalismo tatcher-reaganiano, com
«globalização do ajustamento estrutural», mais tarde
continuado, no mesmo sentido «globalizador», pela invasão
técnica, financeira e depois económica dos países socialistas.
Assim se foi dando «ouro aos pobres», e mais ainda se lhes dá
agora com o magnânimo «perdão» e com o que depois se vier a
investir. Desde que... como proclama o editorialista do DE, os
países tenham «uma elite minimamente confiável e uma política
económica previsível», tranquilizado pela promessa do FMI de
«ser vigilante e exigente».
Com F de função, M de Marshall e I de imperialismo se compõe a sigla FMI.
Tudo comprova a
função estratégica, quer do estabelecimento e crescimento da
dívida, quer da cínica, hipócrita, farisaica, recuperação da
justa reivindicação da sua anulação através deste
«perdão», nos montantes e nas condições que se conhecem.
Há quem lembre o tão citado (e re-citado) Plano Marshall para
atacar os que chama «sobreviventes da "vulgata" marxista»
por hoje tomarem posição idêntica há que teriam tido há
cinquenta anos relativamente ao dito Plano.
E depois? M também é letra com que se escreve memória, e ela
lembra que o capitalismo (coisa que ainda existe...) se serviu
desse Plano como arma estratégica. Ora, sendo os marxistas
anti-capitalistas, têm todo o direito (até diria o dever) de
estar contra estratégias do capitalismo. Que alguns que hoje
teriam perdido memória se lembrem do que liam há vinte e trinta
anos sobre a «dívida externa», então na adolescência da
arte. Até parece que a desmemória lhes faz seguir Lenine às
avessas, numa de desaprender, desaprender, desaprender sempre.
Pelo que... não sobreviverão a coisa nenhuma!
Neste contexto se enquadram alguns comentários (e a ausência de
outros) relativos a esta questão da dívida, e do seu
«perdão», e a duas situações, que contribuem para melhor
entendimento teimoso, persistente, fundamentado do
que é o imperialismo.
De A - como Angola - a Z se escreve a geografia do imperialismo.
A primeira
situação referida respeita a S. Tomé e Príncipe, que é dito
ser o país que tem o maior ratio Dívida Externa/PIB
quase 7! sem que nada se acrescente sobre a sua
condição de país dependente, de monocultura agrícola, o
cacau, com preços impostos por quem comanda o comércio
internacional e que, como muito bem lembra FSC (desta
lembrou-se!), são os mesmos que um estudo do BM sublinha
praticarem «direitos aduaneiros sobre produções industriais
provenientes dos países pobres quatro vezes mais altos que os
direitos sobre importações vindas de outros países
desenvolvidos».
Estas são manifestações do imperialismo económico que
substituiu e/ou complementa o colonialismo político, e que
continua a utilizar a arma da dívida externa, em si mesma e por
via do condicionalismo dos «perdões».
O que ajuda a compreender (sem, no entanto, levar a aceitar) o
que apareceu escrito sobre Angola, cuja dívida não deveria ser
«perdoada» pois dessa maneira «(se) iria, sobretudo, favorecer
o Governo do MPLA e, consequentemente, provocar um desequilíbrio
entre as duas partes em conflito militar».
Lê-se, e espanta como se pode ir tão longe. Não sei se na
ignorância, se na má-fé...
Angola é até acusado de ser país rico em recursos naturais,
«não fazendo muito sentido aplicar um perdão de dívida (ao
governo)», como se escreve sem se acrescentar que a outra
«parte em conflito» se serve criminosamente desses recursos
naturais dos diamantes para prosseguir a guerra que
dizima aquele povo. E que o faz no reiterado desprezo e
desrespeito por sucessivos acordos e decisões, alguns com aval
da «comunidade internacional» de que tanto se fala, e ainda com
ajudas para dispor de armas que, segundo FSC, o governo do país
não deveria poder comprar por ter dívidas e serviço de dívida
para pagar!
Por hoje, chega!
Muito haveria ainda
a dizer sobre a confusão quanto ao condicionalismo relativo às
aplicações dos fundos resultantes do «perdão»: em
«projectos de desenvolvimento» para FSC, em «acções
sociais» para o economista César das Neves na «peça»
assinada por CT, em «programas de reajustamento durante três
anos» e «em educação e no combate à sida» noutra «peça»
do mesmo jornal, decerto em formação de «elites minimamente
confiáveis», evitando a conhecida «fuga de cérebros», se bem
interpreto SF.
O tema é inesgotável. Mas, por hoje, chega!