A TALHE DE FOICE
À
deriva
As análises aos resultados eleitorais são um dos exercícios mais interessantes a que se dedicam os analistas políticos e comentadores de serviço da nossa praça. Conhecido o veredicto das urnas, eis que a generalidade se desdobra para encontrar nos números os prognósticos antes insinuados ou mesmo proclamados como verdades absolutas.
Verdadeiramente
exemplar da complexidade desta tarefa é o artigo de Vital
Moreira, no «Público» de anteontem, intitulado «A
decepcionante vitória».
Depois de explicar como é que «tendo falhado a maioria
absoluta, o PS deslustrou a sua vitória» - falhanço aliás que
VM não compreende dado só se lembrar de sucessos na anterior
governação -, VM admite que afinal o falhanço acabou por
beneficiar o sistema político, uma vez que «a tendência para a
bipartidarização estancou», o «leque político parlamentar
ampliou-se e diversificou-se».
No entanto, como não há bela sem senão, VM logo vislumbra um
rol de desvantagens para os governos minoritários, a saber: a
«instabilidade», a «tendência para as cedências aos grupos
de interesse», a «desresponsabilização política», a
«dificuldade de opções de políticas de fundo», dificuldades
essas aparentemente intrínsecas apenas a segundos mandatos já
que ao primeiro VM não tem nada de substancial a apontar, pelo
que prevê «que as coisas se tornem mais difíceis» do que
foram nos últimos quatro anos.
Passando à análise das causas do falhanço, VM conclui primeiro
que o PS errou ao apostar explicitamente no objectivo da maioria
absoluta, e sobretudo porque, tendo-o feito, descurou «a
necessária "dramatização" eleitoral». Quer dizer,
faltou ainda mais hipocrisia e espectáculo, mais papas e bolos,
mais chantagem e intimidação dos «tolos». O segundo erro do
PS, diz VM, foi o de ter privilegiado «o alargamento eleitoral
ao centro-direita, desguarnecendo o lado esquerdo». Assim, o PS
«foi bem sucedido na cativação do mundo dos negócios e de
algum eleitorado conservador», mas «perdeu eleitorado urbano,
no mundo do trabalho e nas camadas intelectuais». Acontece,
quando a manta é curta, tapa-se a cabeça e destapa-se os pés.
Aparentemente, VM não percebe porque é que o PS «acabou por
pagar, mais do que se poderia esperar, os efeitos de algumas
tergiversações ideológicas». A simples resposta de que pode
ter sido porque afinal as ideologias não acabaram, parece não
ter ocorrido ao articulista.
Chegados a este ponto, e reconhecida a preferência do PS em
«conquistar o aplauso dos banqueiros e da Igreja Católica», ao
invés de «realizar a reforma fiscal regular e melhorar os
serviços públicos ou reformar a justiça ou o sistema de
saúde», VM conclui que afinal a «decepcionante vitória»
talvez seja «um bom indicador dos limites da chamada
"terceira via" em países do Sul da Europa», onde a
existência de «um partido comunista ainda com considerável
implantação e uma forte tradição ideológica laica,
republicana e socialista não permite que a deriva dos partidos
socialistas para o centro seja efectuada sem riscos de perdas
sensíveis à esquerda». Distraído, VM esqueceu-se do Norte da
Europa, onde as «terceira vias» já conheceram melhores dias.
Posto que a «terceira via» sempre anda à deriva, VM desconfia
agora que «o abandono das referências doutrinárias do
socialismo (...) pode, afinal, não compensar». Mas se «ainda
bem que assim é», como conclui VM e nós concordamos, o que há
afinal de «decepcionante» na vitória do PS sem maioria
absoluta? Palpita-nos que de tanto derivar já perdeu um pouco o
norte. Anabela Fino