Não tem de quê, senhor engenheiro


Diz quem sabe que «estava tudo previsto» para a chegada da maioria absoluta: as bandeiras eram aos milhares, os carros de som às centenas e todo o pão fora transformado em rosas. Mais: para o dia seguinte prometia-se uma surpresa... Quanto aos participantes na festa, era certo e seguro que chegariam mal a boa nova fosse anunciada – coisa que ocorreria às dezanove, hora do início das celebrações que se queriam de arromba. Dúvidas sobre a anunciação, ninguém as tinha. Aliás, os poucos incrédulos inicialmente detectados, ficaram reduzidos a metade quando o engenheiro, se declarou disponível para agarrar Portugal nas suas «boas mãos»; a outra metade passou a acreditar quando «o grande comunicador», «de olhos nos olhos» e «com grande humildade», pediu aos eleitores que votassem «de olhos fechados» e lhe dessem, assim, a maioria absoluta. Acresce que a governamentalização e a instrumentalização corriam á rédea solta por todo o País (não fosse o diabo tecê-las) e as sondagens garantiam que eram favas mais que contadas, e Mário Soares decretara que o engenheiro «merece a maioria absoluta»... Pergunto: perante tudo isto quem ousaria duvidar?

Contudo, às dezanove, surpreendentemente, ela não chegou. Mas mandou recado: viria, sem dúvida, mas chegaria um pouco mais tarde, ao que parece devido ao trânsito, que era muito intenso, entre Setúbal e Lisboa. Entretanto, e como estava programado, a festa começara: as aparelhagens sonoras cantavam e davam vivas ao engenheiro, as bandeiras agitavam-se, as rosas espalhavam os seus naturais odores... E assim foi passando o tempo. «Quem espera, desespera», diz um ditado; «Quem espera sempre alcança», diz outro: ambos hão-de bater certo consoante as circunstâncias e neste caso bateu certo o primeiro: a esperada não chegava, ao que parece sempre retida entre Setúbal e Lisboa, e a desesperança foi ocupando a festa. Pouco a pouco os cantos calavam-se, as bandeiras enrolavam-se, as rosas murchavam. E quando, às tantas, um íntimo do engenheiro veio dizer aos melancólicos foliões que não sabia, absolutamente, se ela viria ou não mas que, caso não viesse, mandaria a irmã mais pequena... os cantos e as bandeiras e as rosas festejaram tristemente a notícia. E adormeceram.

Da surpresa prometida para o dia seguinte ninguém mais falou: para surpresas bastava o que bastava. No entanto a máquina estava montada e a surpresa aconteceu de manhãzinha – como se tudo se tivesse passado como estava previsto: de um gigantesco cartaz acabadinho de colar, salta-nos à frente dos olhos o engenheiro, com o rosto de há quatro anos e dizendo-nos com a sua voz actual: «Obrigado Portugal».
É óbvio que o cartaz estava noutra onda, que fora pensado e concebido para a outra situação, que o engenheiro agradecera a Portugal antes de tempo, enfim que fora Portugal a fazer a surpresa ao engenheiro...
De qualquer forma, perante aquele «obrigado» tão sem sentido mas tão sentido só nos resta retorquir misericordiosamente: não tem de quê, senhor engenheiro. — José Casanova


«Avante!» Nº 1350 - 14.Outubro.1999