P. 93525001000


Desculpem-me a provocação, mas continuo a dar por mim a constatar que o espectador de televisão neste país, pela força da habituação, parece já ter sido completamente anestesiado face à sem-vergonha de que dão prova, em geral, todos os nossos operadores televisivos, no uso e abuso (quantas vezes ultrapassando os próprios limites legais) da faculdade que a mesma Lei lhes confere de inserirem publicidade nas suas emissões.
É certo que esta situação se agravou substancialmente a partir do momento em que o oportunismo político objectivamente permitiu que o governo de um tal Cavaco Silva, em tempos que já lá vão, tenha desviado a atenção dos portugueses, utilizando em clara manobra demagógica a «benesse» de aparentemente lhes poupar o pagamento de uma taxa de televisão para, ao mesmo tempo, de forma indirecta, abrir caminho para que se continue a sacar do bolso dos contribuintes os milhões de contos que todos anos cobrem os constantes défices que a gestão absurda, incompetente e suicida da nossa televisão pública origina.
Entretanto, mesmo dando de barato esta «inevitabilidade» de ter de continuar a suportar os autênticos exageros publicitários que se sucedem no primeiro canal da RTP, o facto é que, mesmo na RTP 2, que a «bondade» governamental há tempos poupou à invasão da publicidade comercial, a insensibilidade dos programadores e dos burocratas que planificam as suas emissões continua a permitir usos e abusos - neste caso, da chamada «publicidade institucional» (cujo controlo de qualidade parece, aliás, arredio dos responsáveis da estação), ainda e sempre interrompendo abruptamente os programas daquele canal, mesmo os de maior qualidade.
É assim possível continuarem a acontecer verdadeiros e escandalosos absurdos como aquele que se passou, por exemplo, com um dos últimos programas da série «Retratos» que a RTP 2 vem transmitindo com regularidade e que, numa iniciativa que merece todo o aplauso, se destina a recordar-nos que, afinal, existem entre nós, artistas, escritores, pensadores, que contribuem para o engrandecimento da nossa Cultura.
Tratava-se, na circunstância, de um excelente programa dedicado a uma grande actriz, Carmen Dolores, e que, na sua actual adaptação de 99 em relação ao original de 94 (que, confesso, me tinha passado despercebido na ocasião, se é que chegou a ser então transmitido – tudo é possível naquela casa...), continua a manter um intervalo a meio (!), agora absurdo face aos novos regulamentos da publicidade naquele canal, e que ainda deixou ver uma fria legenda impressa a branco sobre fundo de cartão preto, com os dizeres:

Carmen Dolores – P. 93525001000 – versão actualizada – Agosto de 99 – 2ª. parte.

Entretanto (pior a emenda do que o soneto!), não contente com o facto de ter deixado ir para o ar tal legenda, o burocrata de serviço ao alinhamento da emissão, nem tal procurou ao menos disfarçar, resolvendo (pasme-se!) mandar parar de forma abrupta a transmissão do programa, que já se havia reiniciado, para então inserir de supetão um bloco de dois spots de promoção interna da própria RTP relativos ao anúncio da transmissão de «Um Chá no Deserto» e da «Cavalaria Rusticana» - coisa que se lhe afigurou absolutamente inadiável, nem sequer lhe passando pela cabeça deixá-lo para o fim do programa já que a tal não estava obrigado por qualquer contrato de carácter publicitário!
O facto é que esta ocorrência veio manchar de forma irremediável o ritmo interno de um documentário que, independentemente da chama pessoal, irradiante, da personalidade nele retratada – e que, de forma tão veemente e até apaixonada, foi sendo sublinhada pelos vários e conceituados intervenientes e convidados a pronunciar-se sobre a grande actriz – apresentou algumas novidades em programas deste género, que não podem deixar de ser aqui referidas.
Por um lado, do ponto de vista da construção «dramatúrgica», não deixou de ser inventivo e executado de forma relativamente original o processo através do qual, pelo sistema chroma-key, tanto Carmen Dolores como os outros convidados, se enquadravam harmoniosamente (até com eles «dialogando») em relação aos vários e abundantes materiais documentais de arquivo – fotos, recortes, sequências filmadas – que, a par e passo, iam sendo projectados como ilustração ao que era dito.
Mas a grande novidade e o verdadeiro achado do documentário, ainda relacionado com os aspectos formais da construção, foi a própria forma como a retratada falava sobre as memórias da vida e o percurso da carreira - não através da habitual montagem de excertos de uma entrevista, da qual apenas são aproveitadas as respostas, mas dirigindo-se à própria câmara, falando directamente connosco, em sequências de texto claramente preparadas antecipadamente, com o seu timing interno justo e adequado, e até deixando perceber na interiorização memorizada do que queria dizer, certos laivos de «representação» (pausas, sorrisos, até gargalhadas) que, neste caso, de forma alguma nos provocaram qualquer sensação de postura postiça.
Coisa só ao alcance, neste preciso contexto audiovisual, de uma personalidade tão sensível e inteligente como continua a ser Carmen Dolores. Bem haja! — Francisco Costa


«Avante!» Nº 1350 - 14.Outubro.1999