Timor

Timor Lorosae
entre as ruínas e a reconstrução


«Muita cinza, muito fumo e muita esperança», foi como o padre timorense Filomeno Jacob descreveu, em Darwin, a actual situação em Timor-Leste. Um descrição que sintetiza, em poucas palavras, uma realidade profundamente marcada pelo rasto de destruição e mortes que as milícias e o exército indonésio deixaram atrás de si, enquanto a vida regressa, agora também pelo afluxo contínuo dos refugiados em Timor-Ocidental.

Milhares de pessoas estão a atravessar a fronteira de Timor Ocidental e Timor-Leste. Um regresso em massa, mal foi anunciada a decisão da assembleia indonésia sobre a ratificação dos resultados da consulta sobre a independência.
Os planos de contingência, que estavam já a ser preparados pelas agências da ONU, foram apressados depois dos sinais de Jacarta de que uma decisão sobre a ratificação dos resultados e sobre a anulação da integração de Timor-Leste na Indonésia, estava para ser desde já tomada.
O objectivo dos planos de contingência é de «criar estruturas» que posteriormente sirvam como primeiro ponto de assistência antes das populações refugiadas regressarem às suas localidades de residência. Segundo as organizações médicas e humanitárias no terreno, «as pessoas vão chegar, recebem cuidados médicos básicos, quase de primeiros socorros se for necessário, alguma água e biscoitos e depois têm que continuar a seguir para os locais onde vivem em Timor-Leste».
Numa tentativa de antecipar este regresso em massa dos refugiados, a ONU tinha entretanto iniciado planos alargados que incluem o transporte de material humanitário, por helicóptero e por estrada, para a região.. A ONU pediu ainda às equipas médicas para prepararem equipas que possam estar «a postos» na zona da fronteira, para prestar cuidados básicos de assistência.
Os refugiados continuam também a chegar por mar. Pelo menos dois barcos com mais de 3.000 refugiados a bordo deverão chegar a Timor-Leste esta semana. Espera-se no mínimo poder trazer de regresso até 6.000 pessoas por semana. Durante os primeiros 15 dias da operação de repatriação, já foram repatriados de Timor Ocidental para Timor-Leste 2.100 timorenses.
Neste momento, são centenas de pessoas que atravessam a fronteira em cada hora, o que exige, face às ameaças, que se mantêm, das milícias, que para além do reforço da presença das agências humanitárias na zona, principalmente a nível médico, se proceda a um paralelo aumento da presença de efectivos da Interfet nos vários pontos de entrada.
Preocupantes são dois pontos fronteiriços, formados por pontes, o primeiro ligeiramente a norte de Maliana e o segundo a oeste de Batugade, na vila de Motaain, palco de confrontos entre soldados da Interfet e efectivos de segurança indonésios.
Além de monitorar a fronteira, a Interfet tem igualmente de tentar evitar que elementos das milícias ou armas atravessem a fronteira.

Reconstrução

Pelo menos vinte corpos foram descobertos terça-feira na localidade de Liquiçá. Residentes em Suai mostraram durante o fim-de-semana a soldados da Interfet, marcas da carbonização de mais de 200 pessoas mortas durante um ataque das milícias à igreja local. O coronel Mark Kelly, porta-voz da Interfet, confirmou que um número não determinado de corpos chegou entretanto à costa, próximo de Batugate. Terríveis testemunhos da violência desencadeada contra o povo timorense.
Entretanto, neste momento, como afirmou o padre timorense Filomeno Jacob, o principal sentimento do povo timorense é a «esperança e determinação no enfrentar de todas as dificuldades» na reconstrução do país.
A reconstrução económica e o agendamento da vida política estão na ordem do dia.
A missão conjunta de avaliação da situação em Timor-Leste, liderada pelo Banco Mundial, seguirá nos próximos dias para o território, integrando 26 representantes timorenses, ao lado de técnicos do BM e de agências das Nações Unidas.
A missão de avaliação - cuja criação foi anunciada no âmbito da reunião do Conselho nacional da Resistência Timorense (CNRT), em Darwin - fará um estudo sectorial aprofundado de necessidades para a reconstrução de Timor-Leste, que será a base para a elaboração de um plano de auxílio financeiro internacional ao território.
Um plano que envolve o compromisso, como esclareceu Ramos Horta, de que «pelo menos nos próximos cinco anos, qualquer plano de apoio financeiro a Timor-Leste não poderá incluir os tradicionais programas de austeridade do BM nem ser assente em empréstimos internacionais».
Para Ramos Horta, o apoio internacional à recuperação de Timor-Leste deverá tomar a forma de subsídios que não impliquem o endividamento do país. As áreas prioritárias para a recuperação do território são a agricultura, «para garantir a estabilidade alimentar» e o investimento em pequenos projectos industriais e comerciais.

Também no plano político, se começa a esboçar a construção de Timor Lorosae.
As primeiras eleições, de natureza autárquica, poderão ser realizadas dentro de um ano. Segundo o vice-presidente do CNRT, Ramos Horta, estas eleições não poderão acontecer antes de passados 12 meses do início da administração da transição pelas Nações Unidas, uma vez que é necessário preparar tudo, nomeadamente a lei eleitoral.
O vice-presidente do CNRT acrescentou que as eleições para uma assembleia constituinte, que adoptará a constituição e virá a converter-se possivelmente na assembleia nacional, só serão possíveis no final do mandato da ONU. Ressalvou, porém, que a assembleia nacional deverá estar constituída antes.
Para a constituição da assembleia nacional, o plano do CNRT aponta para a convocação, pela ONU, dentro de cerca de um ano, de uma conferência constitucional, para começar a debater um projecto de constituição que depois seria sujeito p+reciação na assembleia constituinte eleita.

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Conselho da Resistência
Estrutura renovada

A estrutura renovada do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT) que irá sair da reunião magna da organizaçäo que decorree m Darwin vai incluir um «Conselho da Transição» e duas novas comissões como orgãos internos, anunciou Xanana Gusmäo.
As duas novas comissões do CNRT - que irão substituir as actuais Comissão Executiva
e Comissão de Jurisdição e Controlo - serão a Comissão de Pesquisa e Planeamento e a Comissão de Igualdade de Géneros, destinada a promover o estatuto das mulheres na futura liderança timorense.
O CNRT manterá como orgão directivo principal a Comissão Política Nacional, da qual sairá o novo Conselho da Transição, que terá seis ou sete membros e a vocação específica da ligação estreita com as Nações Unidas durante o período de dois a três anos de preparação e vigência da administração transitória sob a égide da ONU até à formalização da independência do território.
Xanana Gusmão disse que na reunião de Darwin «nasceu a consciência de que   o CNRT passou a ter como missão a reconstrução de Timor-Leste» e reiterou a posição de que «depois do longo período de luta pela libertação é necessário criar uma nova      mentalidade, mais profissional que activista, virada para a reconstrução».
O presidente do CNRT manteve, em conferência de imprensa, a defesa da tese da reconciliação entre os timorenses como via para a construção do novo país, «com a    excepção daqueles que derramaram sangue timorense, esses são criminosos que devem ser punidos».

Jacarta aceita
independência de Timor-Leste

Quase 24 anos após a invasão, Jacarta aceitou o inequívoco voto de independência dos timorenses. Um facto já saudado por todo o mundo e que abre uma nova fase na luta do povo timorense por uma pátria, permitindo-lhe, finalmente, concretizar a enorme «ânsia de reconstrução» de que fala Xanana.

A aceitação, pelo parlamento indonésio, dos resultados da consulta aos timorenses, acontece quase 24 anos depois da invasão do território e 23 anos após Timor ter sido reduzida a uma província da Indonésia.
Este o resultado de uma longa luta clandestina e de guerra de guerrilha contra o invasor. Luta ignorada e que só veio a ganhar visibilidade quando, em Novembro de 1991, o massacre do cemitério de Santa Cruz, em Díli, é filmado e mostrado ao mundo.
Timor volta às primeiras páginas dos jornais em 1996, quando o Prémio Nobel da Paz é atribuído a D. Ximenes Belo e Ramos Horta.
Dois anos depois, com a substituição de Suharto por Habibie na presidência da Indonésia, Jacarta admite abandonar o território, caso a população timorense recuso um simples estatuto autonómico.
Em Maio do mesmo ano, em Nova Iorque, Portugal e a Indonésia assinam três acordos que estabelecem o direito à autodeterminação dos timorenses, as regras para o referendo e as medidas necessárias para a paz.
A consulta popular a 30 de Agosto, a participação em massa do povo timorense, apesar de um ambiente claramente intimidatório, o voto inequívoco pela independência, o terrível massacre que se lhe seguiu ainda está bem presente na memória de todos nós.
As marcas dessa violência estão por todo o país, mas a vida retoma os seus direitos e, neste momento, de par do garantir condições de segurança e o regresso de milhares de refugiados (muitos deles empurrados para fora das fronteiras de Timor-Leste), é de reconstrução que se trata.
O conselho de transição, que o CNRT criou para coordenar a participação timorense na administração da ONU no período de transição já está definido. É presidido por Xanana Gusmão e inclui seis outros elementos da liderança da resistência timorense.


Solidariedade

Mais de uma centena de artistas plásticos doaram as suas obras para uma exposição e leilão a favor da reconstrução do território de Timor-Leste.
Pintores, escultores e fotógrafos, alguns bem conhecidos e outros representantes de uma nova geração de artistas, estão presentes durante mais de uma semana numa mostra no «Armazém 7», ao Cais do Sodré, em Lisboa.
O leilão, previsto para o dia 26, reverte na sua totalidade para o Comissariado de Apoio à Transição em Timor-Leste.
Júlio Pomar, Júlio Resende, José de Guimarães, Julião Sarmento, Ângelo de Sousa, João Cutileiro e Graça Morais são alguns dos nomes mais conhecidos representados entre os dias 22 e 31, na exposição e leilão de solidariedade.
Em Espinho, o XXIII Festival Internacional de Cinema de Animação, que decorre entre 8 e 14 de Novembro, vai abrir todas as sessões com um pequeno filme de solidariedade para com o povo timorense.
O filme, da autoria de José Miguel Ribeiro, foi oferecido a todos os canais de televisão portuguesa no mesmo dia em que chegou a Timor-Leste a força internacional (Interfet), mas apenas a RTP o está a exibir.


«Avante!» Nº 1351 - 21.Outubro.1999