Paquistão
Exército no poder


O poder mudou de mãos no Paquistão. O general Pervaiz Musharraf, horas depois de ser demitido do cargo de chefe do estado-maior do exército, liderou um golpe militar, proclamou o estado de emergência e suspendeu os órgãos civis. Entretanto anunciou a criação de um «gabinete consultivo» e de um governo transitório e decidiu reduzir as tropas na fronteira com a Índia. O presidente norte-americano já manifestou o seu agrado em relação às declarações do golpista.

No dia 12, o aeroporto de Islamabad foi encerrado e as estações de rádio e televisão deixaram de emitir. As residências do primeiro-ministro, Nawaz Sharif, e de outros membros do Governo foram cercadas. Os primeiros passos do golpe de Estado estavam concluídos. Horas depois a situação tornou-se oficial: o poder havia sido tomado pelo exército, liderado pelo general Pervaiz Musharraf.O estado de emergência foi declarado dois dias depois. Musharraf, recusando-se a deixar o cargo de chefe de estado-maior do exército, assume o lugar de primeiro-ministro e suspende a constituição, a assembleia nacional, as assembleias provinciais e o senado, bem como todos os que desempenham funções nestes órgãos. O primeiro-ministro, os ministros, os vice-ministros, os governadores provinciais e os chefes de governo provinciais são retirados dos seus cargos. O presidente da República mantém-se.
No domingo, os golpistas anunciam a redução das suas forças da fronteira com a Índia, mas o governo indiano considera esta medida insuficiente e exige que «o fim do patrocínio paquistanês» aos rebeldes de Caxemira. «O Paquistão manejou o apoio aos grupos terroristas como uma política de Estado e não vimos sinais claros de que esta situação tenha acabado», afirmou um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros indiano.
A decisão paquistanesa foi, no entanto, bem aceite por parte dos EUA. Bill Clinton considerou que «muitas coisas que ele disse não estavam mal de todo», referindo-se a Musharraf. O presidente norte-americano lamentou o facto de os golpistas não falarem num «calendário sobre o restabelecimento da democracia».
Segundo a Lusa, Musharraf anunciou ainda a formação de um gabinete consultivo e de um Conselho de Segurança Nacional, liderado por si e composto por especialistas nas áreas legislativa, financeira, diplomática e de segurança interna, e prometeu que o exército permanecerá no poder «apenas o tempo indispensável até à plena restauração da democracia».

Direitos humanos

Poucas informações surgem do Paquistão. Aparentemente a população não se manifesta contra o golpe de Estado. A antiga primeira-ministra Benazir Bhutto afirma que «a acção ocorreu devido a um sentimento geral de frustração, pelo facto de Nawaz Sharif estar a desmantelar todas as instituições democráticas». Bhutto apela para que não substituam um «fascista» por uma ditadura militar.
Sabe-se que se iniciou um processo que visa pretensamente pôr fim à corrupção. As contas bancárias de Sharif e de dezenas de deputados e senadores foram congeladas e a polícia tem ordem para prender 250 devedores de empréstimos bancários de quatro mil milhões de dólares.
O exército comprometeu-se a respeitar os direitos humanos, desde que estes «não entrem em conflito» com o estado de emergência. Poucos poderão levar a sério esta promessa, pois, por um lado, é muito fácil argumentar com a «segurança do Estado» e, por outro, o Paquistão é um país onde o atropelo aos direitos fundamentais é muito frequente.
Na semana passada, a Human Rights Watch (HRW) revelou que cerca de oito mulheres são violadas diariamente no país, acrescentando que a violência doméstica afecta 90 por cento da população feminina. A organização acusa as autoridades paquistanesas de fechar os olhos à situação e explica que as vítimas que tentam apresentar queixa são invariavelmente ignoradas.
«A violência contra as mulheres é um fenómeno que se assemelha a uma crise nacional», refere a HRW, acrescentando que se trata de um «fenómeno ainda mais inquietante» por «estes crimes gozarem de uma impunidade absoluta a todos os níveis, a ponto de os responsáveis pelo sistema judiciário considerarem que a violência doméstica não lhes diz respeito».
Se, como se comprova, a situação antes do golpe de estado estava longe de ser boa, prevê-se que agora se agrave, com os órgãos civis suspensos e o poder totalmente entregue aos militares.
Entretanto, a Commonwealth, reunida de urgência, suspendeu o Paquistão da organização, exigindo o estabelecimento de um calendário para a restauração da democracia. Esta resolução, embora tenha essencialmente consequências simbólicas, abre a porta a sanções internacionais mais graves para o país.


«Como queira Alá»


Para quem vive no Paquistão o golpe de estado não foi surpresa. Escrevia Husain Haqqani's, comentarista do «Friday Times», uma semana antes do golpe : «No esforço de fortalecer o seu poder de base, Nawaz Sharif conseguiu assegurar a destituição do ministro da Justiça, um presidente e o chefe das forças armadas. Os seus esforços para cortar as asas ao general Musharraf podem ter terminado por agora, mas a sua relação com o exército continua instável até que Sharif desista de procurar apoio pessoal».
Em Islamabad e no resto do país a calma é total. As escolas não fecharam e o comércio continua aberto. Os bancos encerraram por «precaução a possíveis fugas de capital», «mas por pouco tempo». Sabe-se que um grande número de políticos está sob custódia (entre eles Sharif), presos ou incontactáveis.
Na quinta feira, e segundo comunicado das forças armadas, todos os poderes executivos foram transferidos para o general Musharraf, deixando de rastos qualquer hipótese da democracia voltar nos próximos tempos e confirmando este golpe de estado como o quarto na curta vida do Paquistão (52 anos).
Em contacto com o embaixador de Portugal no Paquistão, Alexandre Vassalo, fomos informados que a comunidade portuguesa, composta por cerca de 50 pessoas, não corre perigo, estando perfeitamente integrada e maioritariamente ligada ao comércio.
Os «amigos» americanos - que tanto ajudaram o Paquistão a militarizar-se e a criar escolas de formação de combatentes talibans para a guerra no Afeganistão, na sua sede de abarcar todas as lutas contra a ex-união Soviética e governos comunistas - apressou-se a condenar o golpe de estado e a pedir a restituição da democracia, mostrando uma vez mais que os EUA não sabem o que fazer com os monstros que vão criando. Não podemos esquecer que o Paquistão é uma potência nuclear.
O que se pode esperar do futuro Paquistão? Para já põe-se de parte a possibilidade de uma guerra civil como se chegou a temer, visto que o apoio do exercito a Musharraf é total. Junta-se também a população descontente com a governação de Sharif.
Sabe-se que Musharraf está em contacto com tecnocratas, tentando encontrar uma base para legitimar a ditadura que pretende instituir. Será natural que se intensifiquem as já boas relações entre Paquistão e os fundamentalistas talibans afegãos. O governo indiano já mostrou disponibilidade em manter um bom relacionamento. O que isto pode significar para o problema de Caxemira não se sabe.
O povo espera para ver o que passará. Como se diz por cá, «Insh'allah», ou seja, «como queira Alá».

Domingos Guimarães, em Islamabad, Paquistão


«Avante!» Nº 1351 - 21.Outubro.1999