A geopolítica do império
configura uma ameaça à humanidade
*

Por Miguel Urbano Rodrigues


A guerra de agressão contra a Jugoslávia contribuiu para tornar transparentes aspectos da geopolítica imperial dos EUA que não eram ainda muito claros para amplos quadrantes das forças progressistas que em todo o mundo identificam na globalização neoliberal uma ameaça à humanidade.

No seu livro «O grande jogo», Zbignew Brzezinski definiu a NATO como o instrumento de uma estratégia integrada e global, a longo prazo, dos EUA para toda a Eurásia.
Na época a afirmação foi criticada como especulativa. Os factos não tardaram a demonstrar que o conselheiro de Carter fora demasiado prudente na sua previsão. Os acontecimentos da Jugoslávia evidenciaram que a NATO é hoje o instrumento da estratégia de dominação planetária e perpétua elaborada pelo sistema de poder dos EUA como complemento indispensável ao funcionamento da globalização neoliberal.
Para se poder avaliar a ambição e complexidade dessa estratégia é útil recordar brevemente o processo de metamorfose da NATO.
A chamada Aliança do Atlântico Norte foi criada em 1949. Segundo os ideólogos ocidentais nasceu como resposta ao «grande medo» provocado pelos acontecimentos de Fevereiro de 1948 na Checoslováquia, quando o Partido Comunista tomou o Poder naquele país. Dez estados europeus (Bélgica, Dinamarca, França, Islândia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal e Reino Unido), os EUA e o Canadá firmaram em Washington o Tratado que fundou a Organização, ao tempo apresentada como exclusivamente defensiva.
Em 1955, a URSS, com o apoio dos países do Leste europeu, reagiu à entrada da Alemanha Federal para a NATO, criando o Pacto de Varsóvia, aliança militar que reunia as forças armadas dos estados socialistas da Europa.
A retirada das forças francesas das estruturas da NATO, em 1966, foi um rude golpe para a Organização. De Gaulle foi o primeiro estadista ocidental a compreender que não se tratava de uma aliança entre iguais, mas sim de uma iniciativa que colocava os europeus numa posição subalterna a serviço de objectivos dos EUA. Quando o Canadá informou que poderia tomar uma decisão similar à da França, chegou a admitir-se que a NATO iria desintegrar-se.
Foi a entrada na Checoslováquia em Agosto de 1968 das tropas do Pacto de Varsóvia, que criou as condições que permitiram a consolidação e o crescimento da NATO. Entretanto, apesar do histerismo que assinalou a redefinição das futuras actividades da Aliança, esta continuou a proclamar o seu carácter exclusivamente defensivo e a propor uma redução equilibrada das forças dos dois blocos. A prática contrariava, porém, o discurso político.
São conhecidas as circunstâncias em períodos tensos da guerra fria que levaram à instalação na Europa Ocidental de mísseis norte-americanos com ogivas nucleares apontados para a URSS. Uma campanha de perversão mediática caracterizada por um anticomunismo primário contribuiu então para atenuar a resistência dos europeus a essa escalada na qual a NATO cumpria um importante papel.


Após a desagregação da URSS e a opção pelo capitalismo na Rússia tornou-se indispensável repensar a NATO. Ieltsin aparecia como um aliado, quase um protegido; adoptou a religião do mercado e aderiu às teses do neoliberalismo ortodoxo. Para os EUA já não era possível justificar as exigências da defesa e portanto os seus gigantescos gastos com armamentos invocando, como antes, aquilo a que a propaganda chamava «a ameaça militar soviética».
Com o desaparecimento do Tratado de Varsóvia, a NATO deveria ter desaparecido. O caracter «defensivo» da Aliança passou a ser um estorvo. Segundo o art.º 5 da Carta do Tratado de Washington «um ataque armado contra um ou vários dos estados (membros) deveria ser considerado como um ataque contra todos», exigindo uma resposta comum. A inexistência de um «inimigo» potencial na Europa criou, portanto, uma situação embaraçosa.
Washington resolveu-a recorrendo a uma nova astúcia de propaganda. A manutenção da NATO foi decidida com base nos supostos perigos que resultariam da existência dos chamados «estados bandidos». Essa ameaça tanto poderia vir do coração da Europa como de países asiáticos ou africanos. Daí a necessidade de reformular o conceito estratégico da NATO, não somente alargando a sua área de intervenção como reforçando o seu potencial ofensivo, de modo a poder cumprir tarefas muito mais complexas. As reformas da organização, esboçadas em sucessivas cimeiras, imprimiram-lhe um carácter ostensivamente intervencionista a partir da conferência de Bruxelas, em 1993, cujas decisões prepararam o bombardeio dos sérvios da Bósnia e o diktat de Dayton.
Entretanto, essa falsa paz, imposta pelos EUA em estilo de ultimato, funcionou também como um teste no processo de subalternização dos aliados da Europa Ocidental, e como um prólogo da expansão da NATO para Leste.
A Aliança mudou não apenas de rosto como de linguagem e objectivos. A sua vertente política acentuou-se bruscamente.
Uma retórica arrogante, e até ridícula, sobre a vocação da organização para defender a paz e os valores democráticos passou a ser rotineira no discurso dos seus mais altos responsáveis. Foi em nome dessa vocação de guardiã da paz e de difusora de valores humanistas que se desenvolveu a campanha do alargamento para Leste cuja primeira fase terminou com a integração dos países do grupo de Vinograd, ou seja a Hungria, a República Checa e a Polónia.
Javier Solana, secretário geral da Aliança, repetiu insistentemente (1) que esse alargamento não alterava a situação estratégica na Europa, e que a Rússia, em vez de ser prejudicada, seria beneficiada pela maior segurança que resultaria do alargamento.
Parece coisa de humor negro. Na realidade, o alargamento foi inseparável da «síndroma russa». Não obstante o esfacelamento da URSS e a colocação de algumas das antigas repúblicas da Ásia Central em regime de quase protectorado (Uzbequistão e Turquemenistão), a Federação Russa - o maior país do mundo, com riquezas fabulosas no seu subsolo - representa ainda um potencial económico e militar enorme. Em Washington nunca se esquece que a Rússia, apesar de um atraso crescente no tocante a armas convencionais, dispõe ainda de um arsenal nuclear capaz de infligir danos irreparáveis aos EUA. Neutralizar completamente a pátria de Lenin, reduzi-la à condição de interlocutor inofensivo é assim um objectivo permanente e prioritário para o sistema de poder norte-americano, quase uma obsessão. A Casa Branca e o Pentágono têm consciência de que o consulado de Ieltsin se aproxima do fim e que o futuro imediato será imprevisível. Teme-se, porém, que o povo russo, humilhado pelo estado de decadência e de vassalagem em que se encontra a nação, pretenda voltar a assumir um grande papel no rumo da humanidade. Reflectindo esses receios, The Economist previa em março que «cedo ou tarde, um homem forte e honesto colocará de pé a Rússia pós-Ieltsine e um novo aspirante à influencia mundial aparecerá no palco».(2)

Obviamente os estrategos do Pentágono não têm resposta para a pergunta: «que solução militar para o problema russo?». Está excluída a hipótese de uma agressão tipo Jugoslávia. O preço de uma tal aventura poderia ser inaceitável, trágico.
Mas os generais do Departamento de Defesa são tradicionalmente imprudentes. Segundo um estudo de Anatoli Verbin, dirigente do Partido Comunista Operário da Rússia(3), recentemente divulgado, «as actividades militares e de reconhecimento desenvolvidas pelos países da NATO ao longo das fronteiras da Rússia, do lado de Murmansk, no Árctico, no Norte do Caucaso e no Extremo Oriente aumentaram substancialmente». Missionários dos países ocidentais têm entrado na Rússia em grande numero para se instalarem em áreas distantes das principais cidades e que não faz muito tempo eram de acesso proibido a estrangeiros. Segundo os serviços de inteligência russos esses missionários dedicam-se a recolher informações secretas sobre o poderio militar do país. Militantes de organizações ecológicas desenvolvem um trabalho paralelo com o mesmo objectivo.


Não são apenas os russos que estabelecem uma relação entre o funcionamento da economia norte-americana e a «necessidade de guerras» que garantam o seu bom desempenho. Já John Maynard Keynes, o salvador do capitalismo após a grande depressão, afirmava ser impossível para um sistema capitalista organizar os seus gastos de maneira permanente e adequada, excepto em condições de guerra(4).
Washington sabe que sem a sua hegemonia militar os EUA não poderiam impor ao mundo o financiamento indirecto do seu gigantesco déficit comercial, que este ano deverá exceder 300 mil milhões de dólares, atingindo um nível «politicamente insuportável» na definição do secretário do tesouro, R. Rubin.
Recentemente, um conselheiro de Madeleine Albright, Thomas Friedman, escreveu no The New York Times que «aquilo de que o mundo precisa, a globalização, não funcionaria se os EUA não agissem com todo o seu poder de superpotência». Porquê? Friedman responde com rude cinismo: «a mão invisível do mercado nunca funcionará sem o punho invisível. Mac Donald não pode ser próspera sem Mac Donnell Douglas que construiu os F-15. O punho escondido que garantiu um mundo seguro para a tecnologia de Silicon Valley chama-se o exército, a aviação, a marinha e o corpo de fuzileiros dos EUA».
Tive a oportunidade de verificar pessoalmente aspectos do funcionamento da engrenagem do poder imperial. Estava em Nova Iorque em Fevereiro de 1992 quando o NYT divulgou o conteúdo de um relatório secreto elaborado pelo Departamento de Defesa dos EUA. Segundo esse documento a hegemonia política e económica dos EUA somente poderia manter-se - contrariando a tradição da ascensão e queda dos grandes impérios - se a hegemonia militar fosse mantida perpetuamente. Era, portanto, indispensável impedir, custasse o que custasse, a emergência no planeta de qualquer poder militar em condições de questionar a actual supremacia esmagadora dos EUA. Paradoxalmente a ameaça futura a essa supremacia não vinha da Rússia, mas da Europa. Segundo o referido relatório, a tendência para a criação de um exército europeu, capaz de garantir a segurança do Continente, tornando supérflua a presença de tropas norte-americanas no Velho Mundo, essa sim, apresentava contornos de uma ameaça a interesses vitais dos EUA que se impunha neutralizar
Esse estranhíssimo relatório passou quase despercebido. Era incómodo. Mas durante uma visita ao Pentágono como membro da Comissão Política da Assembleia Parlamentar da União da Europa Ocidental, da qual, então, eu fazia parte, levantei a questão. O general que nos recebia foi hábil. Não negou a existência do documento. Para desvalorizar o assunto informou que o referido relatório, divulgado por inconfidência, era um papel como muitos outros cujas recomendações não coincidiam com a orientação do Departamento de Defesa, pelo que fora arquivado.
Transcorridos dois anos, a intervenção da NATO na Bósnia assinalou o início da execução da estratégia esboçada no relatório em questão. Começou a ficar claro que era a subalternização da Europa o objectivo principal e não o fim do conflito entre muçulmanos e sérvios, conflito aliás estimulado pelos EUA. A agressão à Jugoslávia, preparada com muita antecipação, conferiu transparência à política de satelitização da Europa.
A existência de uma União Europeia dócil, vassala é considerada em Washington condição imprescindível ao bom funcionamento da globalização neoliberal, tal como a concebem ali.
Num recente ensaio intitulado «Alto à NATO» a que tive acesso, Samir Amin lembra que os governos europeus, com o apoio do grande capital, decidiram aceitar o preço da vassalagem. Foi no contexto da crise que o capitalismo mundial atravessa - crise que atingiu e atinge áreas da periferia como o México, a Ásia Oriental, a Rússia e o Brasil - que «Os EUA, nesta conjuntura caótica, retomaram a ofensiva para simultaneamente restabelecerem a sua hegemonia global e, em função desta, reorganizarem o sistema mundial em todas as suas dimensões económicas, políticas e militares».
Iniciativas como o chamado «Partnership for Peace», que abriu portas à penetração da NATO para Leste, inseriram-se na complexa estratégia imperialista, facilitada pelas cumplicidades russas. Ieltsin, sempre sinuoso, enquanto simulava defender a soberania nacional, acumulava cedências. Os Acordos de cooperação assinados com a NATO contribuíram, concretamente, para que a Organização se tornasse mais e mais arrogante. Tal como aconteceu com Hitler, cada recuo, cada capitulação traduzia-se em novas exigências.


O Novo Conceito Estratégico da Aliança, aprovado em 24 de Abril pp, durante a guerra de agressão contra a Jugoslávia, encontrou a sua expressão num documento inédito pelo estilo e conteúdo. A humanidade foi colocada perante a Carta de um novo Poder Imperial. A NATO, sem mandato, atribui-se o direito de intervir militarmente em qualquer lugar do planeta onde ela considere isso necessário. Coloca-se acima das Nações Unidas, assumindo em relação ao Conselho de Segurança uma atitude paternalista, admitindo que a sua colaboração em defesa da Paz, no grande jogo da Nova Ordem, tem sido útil e pode continuar a sê-lo.
Estranha linguagem. Segundo o Novo Conceito é da NATO e não de qualquer outra organização, incluindo a ONU, que dependem, doravante, a Segurança no mundo, a Paz, a Democracia, a estabilidade económica e social dos estados, o progresso da humanidade. Um paternalismo similar aparece nas referências à União Europeia, à Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e à UEO. O mesmo acontece relativamente à Rússia. Tratando-a como parceiro menor, ela NATO, superpoder, afirma que as relações entre ambas se desenvolvem na base «do interesse comum, da reciprocidade e transparência».
É enfaticamente sublinhado que «a presença de forças convencionais e nucleares dos EUA na Europa continua a ser vital para a segurança europeia» (artº42).
Na realidade o novo conceito não só alarga ao mundo a área de intervenção da NATO, como institui na prática um protectorado sobre a Europa. O absurdo da situação criada é tanto maior quanto a NATO é uma organização multinacional, uma aliança teoricamente entre iguais.
Não se pode negar engenho à estratégia imperial dos EUA ao fazer da NATO, integrada por forças de muitas nações, o instrumento político-militar da política de dominação eterna que pretendem impor à humanidade.
O Novo Conceito Estratégico foi vazado numa linguagem que impressiona pelo farisaísmo. No artº48, por exemplo, informa-se que no contexto de crises que ameacem a estabilidade euro-atlântica e a segurança dos países membros, «forças militares da Aliança podem ser chamadas» a intervir. Quem as «chama», quem define a «ameaça»? Os EUA, obviamente...
Do começo à conclusão, o caracter «defensivo», «democrático» e «pacífico» da NATO é exaustivamente enfatizado.
Entretanto, o novo conceito nega aquilo que é afirmado no documento da Cimeira de Washington ao arrogar-se o direito de falar e agir em nome da «comunidade internacional», sem mandato desta, calcando aos pés os princípios que invoca. Essa ambição é de raiz fascista. A palavra choca, mas expressa uma realidade.
Que comunidade é, afinal, essa? Os l9 membros da NATO, com a peculiaridade de que as decisões são tomadas apenas por um, os EUA.
A brutal agressão contra a Jugoslávia, imposta por Washington, inseriu-se no desenvolvimento de uma política imperial concebida pelos EUA que, publicamente, sem disfarces, se apresentam já como nação predestinada, a única que por direito natural pode ser uma «superpotência». Entre outras missões, os EUA consideram-se investidos do dever de destruir ou desmantelar não apenas os estados «bandidos», mas qualquer país que lhe estorve os objectivos e recuse submeter-se a exigências incompatíveis com a soberania nacional.
Um dos mais brilhantes ideólogos do sistema de poder que dirige a sociedade norte-americana, o prof. Samuel Huntington, neoliberal clintoniano, condensou num ensaio publicado em 1993 na revista Foreign Affairs a tese da perpetuação imperial. A questão, diferentemente do que faz o Pentágono, é colocada numa perspectiva quase religiosa. A dominação imperial norte-americana seria uma exigência ética e dela dependeria a felicidade do homem. Isso porque os EUA «são o único país cuja identidade nacional se define por um conjunto de valores políticos e económicos universais, isto é, a liberdade, a igualdade, a propriedade privada e o mercado». Na opinião de Huntington, a promoção da democracia e os direitos humanos - tal como os entende - bem como os mercados são de muito maior importância para a política dos EUA do que a política de qualquer outro país».
Essa perigosa linguagem, que retoma o mito decimonónico da nação predestinada conduz à aceitação de teses mais pragmáticas nela implícitas, como a chamada Doutrina Lake, assumida pela Casa Branca e pelo Pentágono, segundo a qual os EUA têm não só o direito como o dever de intervirem unilateralmente (sempre que não o possam fazer aliados a outros países) em qualquer lugar do mundo. A intervenção seria também um dever quando os dirigentes da nação a considerem imprescindível à segurança do planeta e, portanto, à felicidade humana.
Conforme recorda Samir Amin no trabalho que citei, «a intervenção sistemática dos EUA assenta em três princípios: 1. A substituição brutal da ONU pela NATO como meio de gestão da ordem internacional; 2. O alinhamento da Europa com os objectivos estratégicos de Washington; 3. A escolha de métodos militares que reforcem o hegemonismo norte-americano (bombardeios sem risco e utilização de tropas europeias supletivas para eventuais operações terrestres).
A NATO, «abertamente transformada em instrumento do expansionismo norte-americano, e não já da defesa europeia, dissipou assim as ilusões de uma autonomia europeia, forçando a União Europeia a um novo alinhamento ainda mais severo do que o imposto no passado a pretexto da guerra fria».
A primeira consequência dessa capitulação é uma machadada nas esperanças depositadas na Europa de Maastricht por aqueles que, ingenuamente, identificam no euro e na existência de importantes contradições entre os interesses da União Europeia e o imperialismo norte-americano a fonte de conflitos económicos susceptíveis de levar a futuras rupturas políticas.
Essas contradições não se anunciam como antagónicas. O comportamento dos partidos social-democratas, actualmente no governo na maioria dos países europeus, é esclarecedor da opção feita: as novas burguesias europeias, nas sociedades informacionais que evoluem no quadro do actual paradigma técnico-científico, aceitam a unipolaridade e a vassalagem como preço de uma globalização neoliberal que multiplica as desigualdades sociais e o fosso entre os países desenvolvidos e os do Terceiro Mundo. O discurso dos socialistas franceses, tal como o de Schoeder e o de Tony Blair, apóstolo de uma inexistente Terceira Via, somente diferem na forma. Ao conformar-se com a estratégia hegemónica e agressiva dos EUA, a caricatura de social-democracia existente na Europa renuncia ao projecto de um mundo multipolar, nega os ideais progressistas que afirma defender e escancara a porta a futuras catástrofes para o conjunto da humanidade. Os factos demonstram que a defesa da democracia e das liberdades, a luta contra a pobreza e a preservação da diversidade cultural são hoje incompatíveis com a geopolítica do império norte-americano.
No plano militar como no económico, a Europa, tal como o Japão, não se esforçam minimamente para reduzir a hegemonia do grande aliado. Não se limitam apenas a aceitar que Washington se comporte como gendarme do mundo. Aceitam também como natural que o Estado norte-americano se agigante e intervenha cada vez mais em todas as esferas da economia desafiando os dogmas do neoliberalismo, enquanto impõe aos outros o figurino do «estado mínimo».


A transformação da NATO em instrumento do expansionismo norte-americano e a sua pretensão de substituir a ONU na resolução de conflitos internacionais insere-se aliás numa estratégia global de dominação mundial cujo desenvolvimento tem sido ocultado por um sistema mediático que, no fundamental, é controlado por grandes transnacionais também norte-americanas.
Se juntarmos as peças de um complexo puzzle, verifica-se que iniciativas como a crescente intervenção militar norte-americana na América Latina, a pretexto do combate à droga (a ameaça de intervenção directa na Colômbia não se concretizou ainda sobretudo pela não adesão do Brasil ao projecto); as chamadas e humilhantes «certificações»; os sequestros de cidadãos de diferentes nacionalidades nos seus próprios países a mando da justiça dos EUA; a arrogante insistência em medidas de extraterritorialidade, nomeadamente as que atingem Cuba; os criminosos e rotineiros bombardeios do Iraque; as sanções cruéis e arbitrárias que punem países que incorrem no desagrado de Washington; a teoria e a prática do chamado «direito de ingerência», constituem outras tantas manifestações de uma estratégia imperial que envolve uma perigosa ameaça ao conjunto da humanidade.
O facto de a sociedade norte-americana reflectir a imagem de um povo gerido por instituições formalmente democráticas com raízes na consciência social e a desinformação resultante de uma propaganda insidiosa que apresenta os EUA e o seu modo de vida como o modelo a seguir pelos outros povos do planeta dificultam a assimilação de uma realidade inquietante.
O sistema de poder que toma em Washington as grandes decisões no âmbito de uma estratégia global desenvolve hoje uma política externa monstruosa - é dura mas adequada a palavra - que pela sua agressividade, cinismo e irracionalidade somente encontra precedente na que celebrizou tragicamente o III Reich alemão. Nela, como outrora no Reich nazi-fascista, a força, nas relações com os pequenos países, é erigida em arma e princípio supremo. O direito internacional é calcado aos pés pela Casa Branca, com a cumplicidade do Congresso, como se verifica com o bloqueio a Cuba e as leis infames que visam ao estrangulamento de um pequeno e heróico povo ao qual é negado o direito de ser plenamente independente e soberano.
A atitude assumida pelo estado norte-americano perante a ONU é, por si só, reveladora de uma política imperial desafiadora da Carta da Organização. Os EUA que se reservam o direito de intervir unilateralmente em qualquer país em defesa do que consideram os seus interesses, não pagam as suas contribuições atrasadas às Nações Unidas, não cumprem resoluções do Conselho de Segurança (nomeadamente no tocante a Israel), criticam sobranceiramente o actual secretário-geral e já anunciaram que vetarão a sua reeleição, tal como fizeram com o anterior.
A ONU recebe hoje de Washington um tratamento comparável ao que a defunta Liga das Nações recebia da Alemanha e da Itália fascistas no final dos anos 30. Os mecanismos do Conselho de Segurança somente são accionados quando isso interessa aos EUA, para referendar Acordos por eles impostos ou para aplicar e manter sanções injustas. Mas o Conselho de Segurança assiste passivamente ao desenvolvimento de tragédias como a de Angola e a de Timor Leste porque essa é a vontade de Washington.


O fim da guerra fria afastou o medo da confrontação nuclear. Mas novos pavores tomaram o lugar dos antigos. O desenvolvimento da ciência, mal aproveitado, não produz os benefícios esperados. O saber não foi colocado a serviço de um projecto humanista planetário. As grandes conquistas da revolução tecno-electrónica beneficiam insignificantes minorias contra os interesses das grandes maiorias cada vez mais empobrecidas e oprimidas.
Num belo livro cuja tradução em português será lançada em breve, « La Izquierda en el umbral del siglo XXI - Haciendo posible lo imposible», a chilena Marta Harnecker aborda com lucidez e coragem a temática da alternativa a um modelo civilizacional que suscita crescente repúdio, mas que se impõe e avança, porque os que o rejeitam não encontraram ainda nos terrenos da teoria e da prática fórmulas de o combater com eficácia, opondo-lhe no domínio do concreto outro modelo.
Esse combate não pode desenvolver-se somente no campo da política propriamente dita. Tem de ser muito mais amplo e despojado de dogmatismos e de localismos. O homem já foi à Lua, mas tem demonstrado ser incapaz de defender valores permanentes, universais, por ele criados ao longo dos últimos 2.500 anos. É hoje inegável que a irracionalidade do mercado sacralizado e o funcionamento do novo paradigma técnico-científico favorecem a emergência de uma cultura global planetária. No limiar do terceiro Milénio é sombrio o panorama. A humanidade evolui no contexto de uma crise global da civilização.
Quem a empurra para o abismo é o sistema imperial que tem o seu polo nos EUA. A sua geopolítica, da qual a NATO é um instrumento, assume contornos tão irracionais que ameaça a própria sobrevivência futura da humanidade. Um professor de Filosofia da França, Georges Gastaud, expressou recentemente a angústia que alastra entre os intelectuais progressistas mais lúcidos num brado que é, creio, inédito na Europa: «Socialismo ou Aniquilação!».
A agressividade da geopolítica do sistema de poder dos EUA só encontra hoje - insisto - precedente na ambição insensata do III Reich. Talvez mais perigosa porque a sua irracionalidade, camuflada por instituições democráticas de uma sociedade que se apresenta como modelo civilizacional, não é transparente.
Vamos ter um mau começo de Milénio. É homérica a tarefa que se coloca às forças progressistas em todo planeta. A globalização neoliberal e o sistema imperial que a concebeu e lhe garante o funcionamento estão condenados. A agonia poderá ser lenta, mas a irracionalidade do modelo inviabiliza-o.
Entretanto, acreditar que transformações revolucionárias e humanistas podem mudar a vida no próximo século não significa que haja no momento condições mínimas para as levar adiante. A dificuldade começa numa pergunta elementar: que «revolução» - passe a palavra à falta de outra - queremos, com que «revolução» sonhamos? Actualmente a esquerda não se encontra em condições de formular com clareza uma alternativa credível ao neoliberalismo .
Não vejo outra alternativa para a globalização neoliberal, capitalista, que não seja uma globalização socialista, a globalização da solidariedade entre os povos. Ela não tem, porém, data previsível no calendário, nem contornos definidos. A correlação de forças é tremendamente desfavorável. Mas a tarefa de tornar possível o impossível está ao alcance do homem, como nos lembra Marta Harnecker. Será o grande desafio do século XXI.

* Comunicação de Miguel Urbano Rodrigues apresentada no Seminário «A Crise do Capitalismo Globalizado na Virada do Milénio em Porto Alegre, Outubro de 1999

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(1)The Economist, 13.03.99
(2)The Economist, mesma edição
(3)L’Agenda secret de l’expansion de l’NATO vers l’Est, de Anatoli Verbin, do Partido Comunista Operário da Rússia, São Petersburgo
(4) in Magazine do The New York Times, 28.3.99


«Avante!» Nº 1351 - 21.Outubro.1999